A DRAMÁTICA SITUAÇÃO VENEZUELANA

Agencia Boa Impresna

Perseguição à propriedade privada e à livre iniciativa, violência, paralisação de hospitais, inflação altíssima, desabastecimento, queda na cadeia de produção, controle dos meios de comunicação etc., atestam o caos implantado pelo governo chavista

 

         A outrora rica e vicejante Venezuela afunda na miséria e no caos. Mas à medida que sua “cubanização” vai se tornando cada vez mais evidente para os habitantes da nação vizinha, crescem as reações. Com a conivência de governos do continente latino-americano, Nicolás Maduro ordena uma repressão brutal contra as manifestações de rua, na tentativa de amedrontar e abafar a reatividade, mas os corajosos protestos contra seu governo ditatorial não cessam.

Catolicismo obteve entrevista inédita com um jovem venezuelano, na qual ele narra o que assistiu e/ou tem acompanhado de mais relevante sobre o assunto na mídia de seu sofrido país. Para não expô-lo, bem como sua família, à sanha persecutória dos partidários do “socialismo do século XXI” — ou, segundo expressão enunciada algum tempo atrás por Lula, dos responsáveis pelo “excesso de democracia” reinante na Venezuela chavista… —, será denominado Gustavo Ramos. Ele conta casos impressionantes, vários dos quais não noticiados pela mídia brasileira. Pelas mesmas razões apresentadas acima, não publicaremos a fotografia do nosso entrevistado.

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Catolicismo — Poderia nos apresentar uma visão sintética da situação venezuelana desde o momento em que se acentuou a desordem em sua pátria?

Gustavo Ramos — Desde o dia 12 de fevereiro último, a Venezuela vive uma série de protestos antigovernamentais, iniciados pelos estudantes e continuados por opositores, essencialmente da classe média. É uma resposta ao profundo mal-estar gerado pelos contínuos atropelos da ordem econômica, política e social do governo chavista. E também uma reação retardada — Hugo Chávez se elegeu em dezembro de 1999 — que tomou conta do país e o foi polarizando pari passu aos seus crescentes problemas. A crise de governabilidade se agrava diante do sequestro dos poderes públicos por um só partido — o governista — que controla tudo. O Estado está completamente sequestrado, a inflação em total descontrole (acaba de bater o recorde de 60%), há desabastecimento e um altíssimo índice de delinquência. As repressões, nos violentos incidentes havidos de fevereiro até agora, resultaram em 42 mortos, mais de 817 feridos e cerca de 2.500 detidos, dos quais por volta de 200 permanecem presos e sujeitos a processos judiciais.

Há um crescente descontentamento da população com o governo, porque o modelo castro-comunista — eufemisticamente renomeado de Socialismo do século XXI — que vem sendo imposto, trouxe como consequência a mais alta inflação do planeta, desabastecimento de alimentos da cesta básica, forte queda na cadeia de produção, perseguição aberta à propriedade privada e à livre iniciativa, controle dos meios de comunicação, censura e controle da educação. Como se fosse pouco, a isso se soma uma criminalidade descontrolada, fomentada pelo discurso de ódio e ressentimento, além da criação e manutenção pelo governo de grupos paramilitares armados (denominados coletivos — outro eufemismo) para controlar setores da população. Tais grupos funcionam como braço armado do governo para amedrontar e procurar acabar com quaisquer protestos pacíficos, os quais foram criminalizados. Todos os poderes do Estado estão controlados.

 

Maduro, presidente da Venezuela, com uma bandeira de Cuba ao fundo
Maduro, presidente da Venezuela, com uma bandeira de Cuba ao fundo

Catolicismo — Como se deu na Venezuela o processo de amordaçamento da imprensa pelo chavismo?

Gustavo Ramos — Há pouco mais de uma década, o chavismo aprovou a Lei de Responsabilidade Social no Rádio e na Televisão, alegando proteger crianças e adolescentes da programação radiotelevisiva. Tratava-se, segundo o discurso de então, de resguardá-los de conteúdos de teor violento ou explicitamente sexual transmitidos por aqueles meios, em particular pela televisão. O que resultou da referida lei? O que efetivamente ocorreu foi que o Conatel — órgão do governo responsável em aplicá-la — passou a desempenhar o papel de comissário político, tornando-se a lei um excelente instrumento para tirar do ar emissoras críticas ou com programas com mensagens incômodas ao regime. Em todos esses anos, não houve um só caso promovido pelo Conatel em que a bandeira tenha sido de defender as crianças e os adolescentes, como se dizia antes de a lei ser aprovada. Esta terminou sendo um enorme e efetivo elemento de coerção. A autoritária revolução bolivariana se valeu de uma tenaz com aspecto “legal”, para censurar e promover a autocensura no rádio e na televisão através da chantagem. Ela quer o controle total.

 

Catolicismo — Como começaram os protestos e que tipos de manifestações eles congregam? Qual é a modalidade de repressão utilizada pelo governo?

Gustavo Ramos — Os protestos constituem uma novidade: começaram no interior do país, mantiveram-se e se estenderam a 16 estados. São manifestações feitas dos mais diversos modos, com atores heterogêneos. Há na Venezuela novos padrões de violação dos direitos humanos, que incluem a participação de grupos paramilitares, o uso da força desproporcionada por funcionários policiais e o roubo sistemático perpetrado por estes em relação aos detidos. Como resposta ao bloqueio informativo dos meios de informação tradicionais, e com tantas demandas e tipos de protesto quanto de pessoas envolvidas — segundo pesquisa de Provea, cerca de 800 mil nos dois primeiros meses —, existe hoje nas ruas um movimento carente de um centro único. Ultrapassando os próprios partidos opositores, deixou de ter como referência os protestos em Caracas, normalmente autoconvocados mediante o uso das redes sociais e dispositivos tecnológicos. Segundo a tipologia de redes, a massa opositora seria uma “rede descentralizada”, na qual alguns pontos conectados entre si articulam uma rede menor em pontos, mas com maior dinamismo, flexibilidade e imprevisibilidade do que a centralização representada hoje pelo “madurismo”.

Esta onda de protestos apresenta novidades em relação a manifestações anteriores. O ímpeto de alguns desses protestos nas primeiras semanas vem se transformando em conjuntos mais inclusivos, revelando um importante fator que é a continuidade. Já duram mais de três meses, contradizendo os que acusam o venezuelano de imediatista. O segundo fator é o número de estados e de pessoas — por volta de 800 mil, em 16 estados dos 23 de que se compõe a Venezuela. O governo afirma que os protestos são violentos, apesar de não chegar nem a 5% o número de pessoas que se envolveram numa briga. Houve marchas, concentrações, vigílias, correntes humanas, cartazes, e até orações coletivas, convocadas em diferentes partes do país. Assim, são muito variadas as características dos protestos, convocados de diversos modos em diferentes centros com autores também diferentes. É falso afirmar que são controlados, que constituem uma doença generalizada expressa de distintas formas.

 

Maduro, presidente da Venezuela, com uma bandeira de Cuba ao fundo
O líder opositor Leopoldo López no momento de sua prisão

Catolicismo — Quais são os produtos de consumo básico atingidos pelo desabastecimento e de que meios se utiliza o governo para reprimir a revolta popular?

Gustavo Ramos — O país está assolado por uma situação econômica aguda, decorrente da progressiva aplicação de medidas socialocomunistas; do desabastecimento de produtos de consumo básico (leite, ovos, farinha, açúcar, café, papel higiênico), sobretudo no interior do país; da falta de medicamentos e insumos hospitalares, que está levando à paralisação progressiva hospitais e centros de saúde; de uma insegurança que se tem convertido num dos principais problemas dos venezuelanos (segundo lugar na taxa de assassinatos do mundo). Há também situações novas: violações de direitos humanos pelo excessivo uso da força da parte de policiais e militares; atuação de grupos civis armados, e de paramilitares alentados e acobertados pelo próprio presidente Maduro para reprimir protestos em sua maioria pacíficos. Existem evidências suficientes do nível de coordenação desses bandos com funcionários policiais e militares, do roubo sistemático que praticam junto aos detidos, de seus ataques a imóveis e conjuntos residenciais, além da utilização de instrumentos sonoros para reprimir e tentar dissuadir as manifestações de rua.

Uma sociedade cansada da imposição de uma ideologia que a maioria rejeita e cujas consequências práticas são o desabastecimento, a inflação galopante, a insegurança, o desemprego e a ausência de inversão.

O maior problema é a pretensão do oficialismo de impor o chamado “Plano da Pátria”, que é a concretização do socialismo do século XXI através de um sistema de governo de estilo totalitário. Ele pretende implantar um modelo socioeconômico e politicocultural de controle das pessoas que fracassou na URSS de Stalin, na China de Mao e na Cuba dos irmãos Castro. O principal responsável pela violência no país é o governo, sobre isso não há dúvida. A perseguição para acabar com os protestos é uma política do Estado.

 

Catolicismo — Quais as causas do desabastecimento?

Gustavo Ramos — Uma das principais causas certamente é a perseguição implacável do governo à propriedade privada nestes 15 anos de chavismo. Maduro, que é a continuação de Chávez, a tem atacado através da expropriação de fazendas e de terras. Foram expropriadas mais de 3.6 milhões de hectares de um total de pouco mais de 30 milhões de hectares de terras agricultáveis, não importando se produtivas ou não, eufemisticamente chamadas de “terras recuperadas”. Destas, só 10% foram pagas pelo Estado. Com isso a produção agropecuária, que em muitos casos era suficiente para atender à demanda interna, passou a precisar de importações para completar as necessidades de consumo do país.

Outra importante causa do desabastecimento é a estatização de empresas privadas. O governo também empreendeu, com fundos provenientes da produção petroleira, a expropriação de mais de 400 indústrias e empresas privadas de capital nacional ou estrangeiro, denominando a isso de nacionalização. Ele o fez em nome de uma mal compreendida soberania nacional, e apenas 30% dessas empresas foram indenizadas pela desapropriação de seus bens.

A nova investida contra a propriedade privada é o decreto que, se for aplicado, obrigará os donos de casas e de apartamentos a vender suas propriedades aos inquilinos “a preço de banana”, estabelecido pelo próprio governo.

 

Catolicismo — No plano jurídico, há falta de segurança devido à prepotência do poder Executivo?

Gustavo Ramos — Sem dúvida. Há muita insegurança jurídica, decorrente, na prática, da implantação do controle do Poder Judiciário pelo Executivo, a ponto de qualquer processo contra o governo ser indeferido, e as pessoas que insistirem em reabri-lo se arriscarem a ser processadas pelo Estado. Isso acarreta um compreensível desestímulo ao investimento.

 

Catolicismo — E qual é a situação do câmbio? O governo o controla totalmente?

Gustavo Ramos — O governo criou o controle do câmbio, acarretando em sete anos mais burocracia, corrupção e desabastecimento, pois nem sequer paga as dividas de produtos, serviços e importados, seja por particulares ou pelo Estado. Estatização paulatina da economia; minguamento da inversão de capitais estrangeiros; incremento da importação, que passou a ser uma atividade cada vez maior para abastecer a Venezuela; caso muito sintomático: o governo deve mais de 3.4 bilhões de dólares às companhias aéreas que voam para Venezuela, levando várias delas a excluírem o país da rota de seus voos.

 

Maduro, presidente da Venezuela, com uma bandeira de Cuba ao fundo
Policial lança bomba de gás lacrimogênio contra manifestantes

Catolicismo — Os governos estaduais e prefeituras da oposição são perseguidos pelo governo de Maduro?

Gustavo Ramos — Todos os governos estaduais e prefeituras não controladas pelo partido de Maduro têm sido enfraquecidos pelo governo, que lhes tira atribuições e cria um governo paralelo especialmente para essas regiões, de modo a ir controlando tudo. Apesar de a maioria dos países comunistas ter abandonado o modelo estatal e comunal, na Venezuela estão querendo implantá-lo à força. Numa faixa das bases chavistas está escrito: “Nem pacto nem traição. Basta de reconciliação, radicalizemos a Revolução”.

 

Catolicismo — Há um culto de personalidade a Hugo Chávez?

Gustavo Ramos — Na hegemonia propagandística do governo, continua a construção de um mito, de uma lenda. No dia do aniversário do falecido Chávez, seu sucessor Maduro chegou ao disparate de dizer, em cadeia nacional de rádio e televisão, que Chávez era “o Cristo redentor da América”.

 

Catolicismo — Pode-se afirmar que o chavismo utiliza a pobreza como política de Estado?

Gustavo Ramos — Confirma-o o próprio ministro da Educação quando, a propósito da “campanha para erradicar a pobreza”, declarou que se pretende estabelecer políticas sociais, mas fazendo uma ressalva, na qual foi muito enfático: “Não é que vamos tirar as pessoas da pobreza para levá-las à classe média e que [elas] pretendam ser esquálidos” (termo com o qual denominam os opositores).

Isso se liga a outra declaração, enunciada anos atrás pelo ministro da Planificação do então governo Chávez numa discussão com o presidente de PDVSA (a Petrobrás venezuelana). Ele disse que a revolução bolivariana se propunha operar uma mudança cultural no país: mudar as pessoas, a forma de pensar e de viver, e que essas mudanças só podiam ser empreendidas a partir do Poder. Assim, a primeira coisa a ser feita é permanecer no Poder para realizar a mudança. A base política para isso, davam-no os pobres: eram eles os que votavam pelo governo, de onde o discurso de defesa dos pobres. Assim, eles deveriam continuar pobres, e era como se necessitava deles, até se fazer a transformação cultural. Entretanto, é preciso mantê-los pobres e com esperança. Ao ser indagado sobre quanto tempo isso levaria, o então ministro Jorge Giordani afirmou: “Trata-se de uma mudança cultural e isso leva ao menos três gerações. Os adultos resistem e se aferram ao passado; os jovens a vivem e se acostumam, e as crianças a aprendem e fazem-na sua; leva pelo menos 30 anos”. Em face dessa declaração, o general Guacaipuro Lameda ficou indignado. Chávez, tentando acalmar a situação, apelou para a esperteza e disse: “Bem, a coisa não é bem assim, Giordani. Vocês são idealistas e estão nos extremos; vamos deixar a reunião para depois”. E nunca mais se reuniram…

O presidente Maduro criou o cartão de racionamento como o que existe em Cuba, chamado contudo, eufemisticamente, de Cartão de Abastecimento Seguro. Ele permite criar um cadastro de controle dos pobres, para que estes possam comprar “sem restrições” os bens que desejarem nas redes de comercialização do Estado…

 

Catolicismo — Nossa revista já publicou matérias sobre Nossa Senhora de Coromoto, Revista Catolicismo, Nº 762 (junho/2014)Padroeira da Venezuela [vide edições de setembro/1976 e setembro/1998], despertando especial interesse nos leitores. Encerrando a entrevista, poderia dizer-nos algo a respeito? Há alguma analogia entre o caso do cacique da tribo de Coromoto com a dramática situação atual da Venezuela?

Gustavo Ramos — Sim, há muita relação com a história de Nossa Senhora de Coromoto [FOTO]. Ela, após aparecer ao cacique em 1652, incentivou-o a mudar-se para a cidade a fim de manter contato com os cristãos e, assim, conhecer a religião católica. Ele aceita, levando sua família e muitos outros índios. Mas depois ele acaba desejando abandonar os ensinamentos cristãos e voltar para a selva onde vivia sem regras. Isto constitui a parte inicial de sua história. Numa segunda parte, há uma nova e misericordiosa aparição de Nossa Senhora ao cacique Coromoto quando ele encontrava-se em seu bohio (choça), decidindo apostatar e levar de volta sua tribo para a vida selvagem. Nesta aparição, o índio pega sua flecha para alvejar a Santíssima Virgem, mas Ela se coloca tão perto dele que ficou sem distancia para lançar a flechada. Assim, o indígena tentou agarrá-La a fim de colocar Nossa Senhora para fora de seu bohio. Neste momento Ela desaparece, deixando nas mãos do cacique uma espécie de pedra, na qual está gravada a imagem d´Ela, sentada num trono com o Menino Jesus ao colo.

Essa aparição não comoveu o cacique dos Coromotos. Certo tempo depois, fugindo para o interior da selva, foi picado por uma cobra muito venenosa. Percebendo que iria morrer e que aquilo era um castigo, começou a se arrepender e desejou ser batizado. Neste momento, passava pelo local um mestiço católico que lhe ministrou o Batismo. Ou seja, apesar de toda a dureza de alma do índio, antes de morrer, Nossa Senhora o salvou. Uma história que revela um dos mais insignes atos da misericórdia.

Que ensinamentos podemos extrair dessa história? Antes de tudo, o de que para Maria Santíssima, em última análise, a maldade humana não consegue opor obstáculos decisivos. De um modo ou de outro, se Ela desejar, acaba vencendo a maldade humana. E que, portanto, se em determinado momento da História da humanidade a Virgem Santíssima quiser praticar um ato de misericórdia generoso, como no caso do índio Coromoto, não em relação a um indivíduo, mas em relação a todos os homens de uma nação, Ela poderá praticar e vencerá, porque à soberana e inesgotável bondade d’Ela ninguém resiste.