Explicando a mudança de mentalidade que tornou possível o Concílio Vaticano II

Abertura do Concílio Vaticano II (1962)
  • Gustavo Solimeo

Muitos autores católicos têm traçado as raízes filosóficas e teológicas da crise atual dentro da Igreja. Esse enfoque contribui muito para explicar a evolução das doutrinas que minam a Fé. No entanto, por mais importante que esse aspecto seja, ele não explica tudo.

Há outros aspectos da prática da Fé, envolvendo hábitos, cultura e costumes que também mudaram. A compreensão desse desenvolvimento é essencial para entender a crise na Igreja.

O pensador católico Plinio Corrêa de Oliveira explicou o processo que levou a uma mudança de mentalidade dentro da Igreja, o qual desempenhou um papel na aceitação de doutrinas errôneas, bem como de novas formas de ser e pensar que se afastam da tradição católica.

Esta mudança de mentalidade explica como os católicos estavam preparados para aceitar o Modernismo quase sem resistência após a morte de São Pio X, que lutou contra o Modernismo. Ajuda ainda a explicar como, depois do Concílio Vaticano II, os fiéis aceitaram com euforia o abandono de tradições, como as batinas, os hábitos religiosos, os véus e de outros costumes piedosos.

As suas penetrantes análises desse fenômeno psicológico e espiritual mostram como tudo isto se tornou possível. A mudança de mentalidade preparou as mudanças doutrinárias que viriam. O que se segue é inspirado nessas análises.

Após um período de fervor…

O Bem Aventurado Pio IX proclama dogma da Infalibilidade Papal e do Primado do Papa (1870)

A proclamação do dogma da Imaculada Conceição (1854) e especialmente do dogma da Infalibilidade Papal e do Primado do Papa (1870) provocou uma onda mundial de entusiasmo e fervor entre os católicos. O Episcopado, o clero e os fiéis aplaudiram estas proclamações.

Ao mesmo tempo, multiplicaram-se as congregações religiosas e as obras católicas. Os missionários difundiram o Evangelho em todos os continentes, a despeito de perseguições na África e na Ásia. A fé floresceu apesar dos governos hostis na França e na Alemanha.

O clero era geralmente zeloso e digno. Apareceram numerosos santos, alguns dos quais foram beatificados ou canonizados.

No entanto, um certo otimismo tomou conta de boa parte do Episcopado, do Clero e dos fiéis, levando a uma certa despreocupação, a uma certa complacência com os sucessos apostólicos obtidos.

A consequência foi uma perda de ímpeto. Isto não levou imediatamente à decadência, mas a uma diminuição do desejo de ir mais alto. Este espírito afetou o clero e as ordens religiosas e teve um impacto negativo sobre os fiéis.

…a tibieza progressiva do clero

Essa diminuição do fervor levou a uma estagnação que progressivamente afetou o clero de alto a baixo, causando uma conseqüente decadência no fervor dos fiéis.

Pois, segundo o famoso abade cisterciense e escritor francês Dom Jean-Baptiste Chautard (1858-1935), existe uma relação entre o clero e o povo, que ele exprime desta forma:

“A sacerdote santo, […] corresponde povo fervoroso;

 a sacerdote  fervoroso, povo piedoso;

 a sacerdote piedoso, povo honesto;

 a sacerdote honesto, povo ímpio.

 Sempre um grau de vida a menos naqueles que são gerados.”[1]

Perda do Espírito Militante

Essa decadência espiritual — caracterizada pela perda do fervor, do espírito de abnegação, do desejo de renúncia e do entusiasmo pela Fé — pouco a pouco levou a uma mudança de mentalidade no clero e nos fiéis, pela qual eles perderam a noção de Igreja Militante.

De fato, muito antes do Concílio Vaticano II, uma piedade sentimental e adocicada espalhou-se entre os católicos.

Exceto alguns sacerdotes que ainda eram fervorosos, por um lado, e liberais que pregavam doutrinas revolucionárias, por outro, o que se ouvia mais frequentemente nos sermões ou o que se lia nas principais publicações católicas eram considerações piedosas e abstratas sobre “humildade”, “caridade”, e coisas semelhantes, válidas para qualquer tempo e lugar, mas completamente desconectadas dos dias de hoje.

Quando os pregadores falavam de combate ou de luta, referiam-se quase exclusivamente ao combate espiritual ou à luta contra as paixões e as más inclinações. Eles nunca, ou quase nunca, mencionavam a luta contra os inimigos da Igreja, quer externos ou internos.

Essa pregação unilateral levou à omissão sistemática de qualquer ideia de militância. Ela contribuiu para uma deformação da mentalidade católica. Os católicos assumiram uma atitude meramente passiva em relação aos inimigos da Igreja.

A perda do espírito militante não levou diretamente à aceitação de erros e desvios modernos. No entanto, contribuiu para o enfraquecimento da resistência a tais erros e desvios. Mudou a mentalidade de inúmeros católicos que passaram a acreditar que combater o erro ou admoestar uma pessoa em erro não é caridoso.

Uma atmosfera de tédio e desejo de mudança

A perda do espírito militante produziu um estado de prostração, sonolência e tédio.

A modorra geral escondia, porém, um descontentamento, uma inquietação indefinida. Havia no ar um desejo indefinido de que essas águas fossem agitadas, para que essa estagnação cessasse de uma forma ou de outra.

Este fenômeno foi agravado pelo Concílio Vaticano II, que criou uma atmosfera de optimismo, ecumenismo e “diálogo” que excluiu a ideia de luta.

Os tempos imediatamente posteriores ao Concílio foram marcados por uma euforia e por um otimismo que é difícil de entender por aqueles que não viveram aqueles dias trágicos.

Em toda parte se repetiam expressões otimistas: “aggiornamento”, participação na liturgia vernácula, envolvimento dos fiéis na vida da Igreja…

A frase atribuída a João XXIII era repetida com frequência: “É preciso abrir as janelas para que o ar fresco possa entrar na Igreja”. E assim chegamos ao dia de hoje.

Da tibieza aos escândalos de abuso sexual

Quando a idéia de luta está ausente, o espírito de vigilância diminui ou cessa completamente.

A falta de vigilância, junto com a tibieza e a pouca fé, teve como fruto amargo  —  mas não imprevisível —  a infidelidade de tantos sacerdotes e prelados.

Não a causa, mas a consequência

Assim, a grave situação do Papado hoje não é a causa da presente crise, mas sim, em certa medida, uma consequência desta crise.

O presente pontificado não poderia ter tido lugar sem o processo de profunda deterioração de todo o corpo social da Igreja, incluindo o episcopado, o clero e os fiéis. Este processo destruiu as defesas naturais, os “anticorpos” que teriam permitido ao corpo reagir.

Infelizmente, não só a cabeça, mas todas as partes do corpo estão doentes. Um misterioso vírus infecta o organismo inteiro. Nem mesmo uma cirurgia drástica pode trazer o corpo de volta à saúde.

Em termos não metafóricos, a muito improvável eleição de um conservador, ou mesmo de um Papa santo, num futuro conclave não será suficiente para restaurar a plena normalidade na vida da Igreja.

De fato, é muito difícil ver como a Igreja pode sair desta crise e voltar a uma situação normal sem a restauração da sociedade temporal que é afetada por uma crise de proporções apocalípticas.

Assim, só a intervenção divina pode salvar a Igreja e o mundo do caos e da loucura que agora parecem reinar em toda a parte.

Esta encruzilhada torna ainda mais atual a mensagem de Nossa Senhora de Fátima, que previu estes tempos e propôs soluções sobrenaturais.

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Notas:

1. Dom João Batista Chautard, O.C.S.R, A Alma de todo Apostolado, Editora Coleção FTD, São Paulo [1962], p. 56.

2. Fonte: Traduzido do original em inglês:  https://www.tfp.org/explaining-the-change-of-mentality-that-made-vatican-ii-possible/ Gustavo Solimeo

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