Fala-se dos sete sacramentos, mas pouco de sacramentais. Poderia me esclarecer a respeito?

Hugo de São Vítor. Miniatura medieval – Biblioteca da Universidade de Oxford

Pergunta — As notícias que li a respeito da declaração Fiducia Supplicans sobre as bênçãos de uniões pecaminosas (divorciados recasados e homossexuais) diziam que se trata de um “sacramental”. O que quer dizer isso? Nas minhas aulas de catecismo, infelizmente não muito completas, falaram-me dos sete sacramentos, mas nunca de sacramentais. O senhor poderia fazer a gentileza de me esclarecer? Obrigado!

Padre David Francisquini

RespostaA pergunta é oportuna, pois permite mostrar a abundância de possibilidades que a Santa Igreja põe à nossa disposição para recebermos benefícios espirituais, por meio de ações (como as bênçãos ou o sinal da cruz) ou objetos (como água benta ou medalhas), dos quais o povo piedoso gosta tanto, mas que os padres progressistas desprezam. Permite ainda destacar a importância ímpar e insubstituível dos sacramentos para se alcançar a salvação eterna.

Nos primórdios da Igreja, por causa da pobreza da incipiente linguagem eclesiástica, o termo de origem latina “sacramento” e seu correspondente grego “mistério” cobriam tudo aquilo que se relacionava com os sacramentos e o santo Sacrifício, e, portanto, não somente as partes essenciais para a validade do sacramento propriamente dito (por exemplo, a aspersão da água e a fórmula “Eu te batizo em nome do Pai, e do Filho, e do Espírito Santo”; ou o cânon da missa) mas o conjunto da cerimônia.

A precisão de linguagem, distinguindo “sacramentos” de “sacramentais”, começou somente a partir do século XII com Hugo de São Vítor e Pedro Lombardo, mas somente com as sumas teológicas de Alejandro de Hales, São Boaventura e Santo Tomás de Aquino chegou-se a estabelecer e difundir o número septenário dos sacramentos, doutrina que ficou consagrada nos Concílios II de Lyon (1274), Florença (1439) e, de forma dogmaticamente definitiva, em Trento (1547).

Bênção de medalhas de Nossa Senhora das Graça

Santificação das várias circunstâncias da vida

A ideia de “sacramental”, primitivamente ligada aos ritos acessórios dos sacramentos, depois transferida a inúmeras cerimônias religiosas e a objetos de piedade, obrigou os teólogos a darem ao termo uma definição tão abrangente quanto possível. No Código de Direito Canônico de 1917, esses esforços de definição foram sinteticamente expressos com a seguinte definição: “Os sacramentais são coisas ou ações que a Igreja tem o costume de empregar, por certa imitação dos sacramentos, para obter por sua oração efeitos sobretudo espirituais” (cânon 1144).

O atual Catecismo da Igreja Católica retomou essencialmente a definição, apenas generalizando essas coisas e ações sob a expressão “signos sensíveis” e acrescentando que “por meio deles, dispõem-se os homens para a recepção do principal efeito dos sacramentos e são santificadas as várias circunstâncias da vida” (parágrafo 1667).

Nos parágrafos seguintes, o Catecismo descreve os traços característicos dos sacramentais e aquilo que os diferencia dos sacramentos.

A diferença fundamental é que os sete sacramentos foram instituídos por Nosso Senhor Jesus Cristo, pelo que não podem ser mudados nem no seu número nem na sua essência, enquanto os sacramentais são instituídos pela Igreja, “com vista à santificação de certos ministérios da mesma Igreja” (os rituais não essenciais dos sacramentos, a consagração das igrejas, dos altares, dos objetos do culto etc.),“de certos estados de vida” (a instalação dos abades, a profissão dos religiosos, a consagração das virgens), “de circunstâncias muito variadas da vida cristã” (o sinal da cruz, a bênção das refeições…), “bem como do uso de coisas úteis ao homem” (bênção das casas, dos carros …). Por isso, os sacramentais “incluem sempre uma oração, muitas vezes acompanhada de um sinal determinado, como a imposição da mão, o sinal da cruz, a aspersão com água benta” (parágrafo 1668).

Diferença entre sacramentos e sacramentais

Algumas bênçãos têm um alcance duradouro: são aquelas cujo fim é consagrar pessoas a Deus e reservar objetos e lugares para usos litúrgicos, exemplo o cálice. Por esse motivo, elas são chamadas “constitutivas”

A segunda diferença fundamental é que “os sacramentais não conferem a graça do Espírito Santo à maneira dos sacramentos; mas, pela oração da Igreja, preparam para receber a graça e dispõem para cooperar com ela”(parágrafo 1670). Ou seja, enquanto os sacramentos agem ex opere operato, ou seja, pelo simples fato de serem ministrados e não pela virtude do ministro, porque é o próprio Deus que intervém soberana e gratuitamente, bastando a boa disposição daquele que os recebe, no caso dos sacramentais a intervenção da Igreja age ex opere operantis, ou seja, pela força de intercessão da Igreja.

A oração do Corpo Místico de Cristo é certamente poderosa e eficaz, mas nem sempre é atendida, seja porque pede bens que não convêm à salvação eterna de quem os solicita, seja porque não é o momento de ser atendido, seja porque a pessoa ainda não está com a disposição necessária para receber esses bens. Isso se nota particularmente nas fórmulas de que a Igreja faz uso nos sacramentais, que não contêm expressões afirmativas, mas implorativas, o que mostra que ela recorre de modo filial à misericórdia divina para obter o efeito desejado.

A terceira diferença é que os sacramentos contêm e conferem a graça habitual ou santificante (a união da alma com Deus), enquanto os sacramentais nos alcançam apenas as graças atuais, ou seja, de modo passageiro, uma iluminação da inteligência e/ou um fortalecimento da vontade para praticar a virtude.

Do anterior se depreende que os sacramentos são absolutamente necessários à salvação, enquanto os sacramentais não o são. Isso é muito importante reter, pois seria um desvio da religiosidade popular fazer a vida espiritual consistir apenas no uso de medalhas ou de escapulários, na participação de peregrinações, na recitação de novenas, excluindo a frequência aos sacramentos, especialmente os da Eucaristia e da Penitência. De fato, os sacramentais não têm poder mágico e sua eficácia depende da disposição de quem os utiliza, e, em particular, da sua fé, esperança e caridade.

Graças espirituais e temporais obtidas com sacramentais

Segundo a classificação corrente dos teólogos, os efeitos dos sacramentais podem ser reduzidos a quatro:

  • Remissão dos pecados veniais (nunca os mortais, que necessitam da confissão) e de modo indireto, ou seja, pelo movimento de fervor que eles produzem em nós (recitação do Confiteor, uso de água benta).
  • Obtenção de graças atuais, devido à intercessão da Igreja (especialmente nos ritos pelos quais a Igreja consagra uma pessoa ao seu serviço).
  • Afastamento dos demônios, sobretudo pelos exorcismos, nos quais a Igreja exerce o poder que recebeu de Nosso Senhor de combater os espíritos malignos.
  • Concessão de um bem temporal, por exemplo, saúde, chuva, fecundidade do campo, os quais são concedidos condicionalmente, ou seja, desde que não sejam um obstáculo ao bem espiritual das almas.

Um quinto efeito a respeito do qual os teólogos discutem é a remissão da pena temporal dos pecados já perdoados, o que certamente ocorre no caso do uso de sacramentais aos quais a Igreja concedeu indulgências.

Ministros e beneficiários dos sacramentais

Os ministros dos sacramentais são normalmente os clérigos, em proporção à importância dos mesmos: as consagrações só podem ser feitas por bispos e as bênçãos dependem daquilo que é abençoado (o Papa abençoa os pálios dos arcebispos e a rosa de ouro; os bispos o crisma, o óleo dos doentes, a bênção da instalação de um abade ou uma abadessa, as virgens consagradas; as demais podem ser realizadas por qualquer sacerdote; o diácono pode abençoar o círio pascal, dar as bênçãos e fazer os exorcismos do batismo, bem como abençoar os doentes aos quais leva a comunhão, e os leigos ao distribuírem a comunhão fora da missa).

Os simples batizados podem também abençoar em nome do sacerdócio comum dos fiéis – por exemplo, quando os pais abençoam seus filhos e os patrões seus empregados, ou ainda quando a pessoa de maior importância abençoa os alimentos antes das refeições. Nesses casos, obviamente a eficácia da bênção depende dos méritos e da santidade pessoal de quem abençoa.

Os beneficiários dos sacramentais são primeiramente os católicos, mas também podem ser ministrados aos catecúmenos e até aos não católicos para lhes obter a luz da fé, ou, junto com ela, a saúde do corpo. Assim os não católicos podem receber as cinzas na Quarta-Feira de Cinzas ou os ramos bentos no Domingo de Ramos e se beneficiarem dos exorcismos. Mas eles devem ser recusados em caso de que sua administração seja causa de escândalo para os fiéis, como seria o caso dos excomungados ou dos pecadores públicos.

Como foi visto acima, algumas bênçãos têm um alcance duradouro: são aquelas cujo fim é consagrar pessoas a Deus e reservar objetos e lugares para usos litúrgicos. Por esse motivo, elas são chamadas “constitutivas”, enquanto as demais são chamadas “invocativas”. As coisas simplesmente abençoadas com uma bênção invocativa podem ser consumidas ou usadas para a finalidade a que estão ordenadas (por ex., o “pão bento” distribuído após a missa em alguns lugares é para ser comido).

Mas as coisas consagradas ou abençoadas com uma bênção constitutiva não devem ser usadas para finalidades profanas, mesmo se elas se encontrarem na posse de particulares (por ex. um cálice). Não seria uma falta de respeito, porém, servir-se de um círio bento para iluminar um lugar numa emergência.

O poder da água benta

Pia de água benta na catedral de São Tiago de Compostela, Espanha

Finalmente, convém nos determos um pouco num dos principais sacramentais que a Igreja põe à disposição dos fiéis: é a água benta, infelizmente retirada de muitas pias durante e depois do Covid e substituída por vidros de álcool-gel… Já nos primeiros tempos cristãos, a água benta era usada para fins expiatórios e purificadores, de forma análoga ao seu emprego sob a Lei Judaica. No século IV, vários escritos cuja autenticidade está isenta de suspeitas, mencionam o uso da água santificada, quer por uma bênção litúrgica oficial, quer pela bênção individual de alguma pessoa santa.

Os primeiros cristãos acreditavam que a água benta possuía propriedades curativas para certas doenças, e que isso acontecia de maneira especial com a água batismal. Em alguns lugares, ela era cuidadosamente preservada durante todo o ano e, por ter sido usada no batismo, era considerada livre de toda corrupção. Esta crença se propagou do Oriente ao Ocidente, e isso de tal maneira que, uma vez administrado o batismo, servindo-se de todos os tipos de vasos, o povo levava consigo a água, alguns guardando-a cuidadosamente em suas casas, enquanto outros regavam com elas seus campos, vinhas e jardins.

No entanto, a água batismal não era a única água benta. No Oriente, também era abençoada regularmente, na proporção necessária, certa quantidade de água para ser empregada na entrada das igrejas, onde um personagem chamado hidrokometes(“introdutor de água”) aspergia os fiéis à medida que entravam no templo. No Ocidente, a partir do século IX, encontram-se documentos sobre a bênção e aspersão de água todos os domingos na Missa.

Naquela época, o Papa Leão IV ordenou que cada padre abençoasse a água todos os domingos em sua própria igreja e aspergisse com ela as pessoas, regra que foi geralmente seguida a partir de então. Do Asperges dominical, com o correr do tempo, passou-se ao costume de abençoar água para distribuir entre os fiéis, que a levavam para suas residências e locais de trabalho, a fim de se beneficiarem de sua proteção.

De fato, por tratar-se de um sacramental, o fato de persignar-se ou de espargir um local com água benta, produz os três efeitos já apontados, a saber, traz-nos graças divinas, purifica parte dos nossos pecados e afasta o demônio. Por isso, é bom ter sempre água benta em casa e usá-la quando nos levantamos e quando formos dormir e em qualquer momento em que desejarmos força especial ou ajuda de Deus, particularmente quando o demônio nos incomoda.

Santa Teresa de Ávila, Doutora da Igreja, tinha uma fé profunda no poder da água benta. Ela pessoalmente a usava para expulsar demônios e repelir as tentações.“Sei por experiência própria que não há nada melhor do que água benta para expulsar o demônio do nosso lado”, dizia a mística espanhola.