Incoerências descaradas

  • Péricles Capanema

Lia aqui e ali, no dia 29 de março, manifestações sulfurosas contra o movimento civil e militar de 31 de março de 1964. Em resumo, proibidas celebrações, nada nos quartéis, nada nas Forças. O Poder Público proibirá qualquer manifestação, por menor que seja, do que ocorreu em 31 de março de 1964 — e depois, em decorrência da mudança institucional. Motivo repetido: foi golpe militar contra as instituições, tivemos ditadura, houve crime contra a democracia. Dentro dos clubes militares de oficiais da reserva, o problema é outro, não são instituições oficiais.

Minha primeira e quase reflexiva reação: quanta incoerência enfatuada. Vou tratar dela. Poderia ter pensado, quanta incoerência enfatuada misturada à hipocrisia deslavada. Com efeito, muitos dos que berram contra a ditadura militar, ao mesmo tempo se dobram em elogios pela ditadura cubana, pela ditadura venezuelana ou nicaraguense, são sabujos de Putin. Mas de momento vou ficar na incoerência.

Ainda tratarei de outros aspectos e temas, será um artigo um tanto “pot-pourri”. Saltou-me logo à lembrança fato pequeno e pitoresco, ocorrido décadas atrás em minha família. Ilustra o assunto, por ele começo.

Coerência infantil. Tenho um primo, convívio fácil, presença agradável, hoje médico competente em Belo Horizonte, que lá pelos anos 70 foi matriculado num jardim de infância. Talvez agora o nome seja outro, pré-escola. O que interessa no caso é que o garoto ainda não tinha sete anos. Certo dia a professora avisou a ele e a seus coleguinhas de turma que não mais deveriam correr pelos corredores, era impróprio, a partir do aviso só queria passos normais neles. Uma pergunta borbulhou imediata do primo, claro, não com as palavras que aqui vão: “Professora (talvez tenha dito tia), estou surpreso. A senhora está proibindo correr nos corredores? Corredores, a palavra indica, não foram feitos para neles corrermos? Corredor, acho, existe para correr. Por que não posso correr num corredor, feito para isto?” Não conheço a resposta da mestra. Sei, houve espanto e até encanto dela. Comentou com a mãe do menino, maravilhara-se com a vivacidade da inteligência de um pimpolho de 5, 6 anos. Viro a página. O que reivindicarei aqui é vivacidade parecida, um jorro rápido da inteligência estimulada pela lógica, recusando incoerências. No Brasil de hoje, grande conquista.

Imposições inafastáveis da inteligência adulta. Admitindo ser o grande valor, digamos supremo, para um país a manutenção da ordem constitucional, o que “cum grano salis” admito, (abaixo direi algo a respeito, embebido em ensino jurídico de milênios), é imprescindível eliminar imediatamente o feriado de 15 de novembro, dia da Proclamação da República no Brasil. Deseduca. Ninguém nega, foi golpe militar, destruiu a ordem constitucional vigente, disparou uma inflação maluca desconhecida no Império, impôs ditadura militar sob a férula de Floriano Peixoto. Antes, tínhamos governo respeitado pelas grandes nações, o Brasil prosperava debaixo de ordem constitucional segura, Lei Magna bem enraizada — era de 1824, portanto, 65 anos de vigência; a Cidadã, de 1988, vai completar 36. Curto, direitos respeitados, instituições funcionando, liberdade de imprensa, eleições regulares, governos legítimos. Tudo isto foi pelos ares com uma quartelada, um golpe; “o povo assistiu àquilo bestificado”, nas palavras conhecidas de Aristides Lobo.

Por coerência, é preciso então cancelar o feriado nacional de 15 de novembro e eliminar quaisquer homenagens a Deodoro e Floriano. Mais uma medida urgente, também por imposição da coerência. Quem venceu as eleições presidenciais em 1º de março de 1930 foi Júlio Prestes. Em outubro de 1930 uma Junta Militar depôs Washington Luís, o presidente ainda em exercício, e entregou o poder a Getúlio Vargas, o candidato derrotado. Golpe também aqui, lesão do estado democrático de direito, ordem constitucional dilacerada, democracia em frangalhos, ditadura. Depois Getúlio deu outro golpe com apoio militar, em novembro de 1937. Por congruência, será necessário cancelar todas as homenagens oficiais a Getúlio Vargas. Incongruências na vida pública descivilizam. Enfim, atendendo a necessidade claramente civilizatória, a coerência na vida pública, é urgente a aplicação a Deodoro, Floriano e Vargas do mesmo tratamento institucional, assim como o midiático (eliminação progressiva de homenagens e propagação contínua do horror aos fatos censurados) que vem sendo aplicado aos presidentes militares recentes. E os que deblateram contra o 31 de março de 1964, por coerência, berrem também contra 15 de novembro de 1889 e a revolução de 1930 (para começo de conversa a ditadura getulista fechou o Congresso, anulou a Constituição, extinguiu os partidos). Repito, são exigências inafastáveis da conduta coerente, obediente ao impulso incoercível da lógica.

Posto o atual quadro histórico, não agir assim é favorecer privilégios vazios, bem como deformações históricas prejudiciais às gerações futuras. Reitero, pereniza fatores de retrocesso e alimenta o atraso.

Duas estacas fundamentais, quase totalmente relegadas ao olvido. Falei acima de ensinamentos de milênios. Vamos a eles. Relembro aqui duas máximas do Direito, a bem dizer incontestes, sempre indispensáveis quando se consideram mudanças de governo fora de procedimentos previstos. A primeira é “salus populi suprema Lex esto”. Que o bem comum seja a lei suprema, máxima do Direito Romano. As leis particulares cedem ao império do bem comum, lei suprema. A segunda máxima jurídica é o estado de necessidade, amplamente utilizada no Direito há séculos, se não milênio, v. g., nas leis e jurisprudência nacionais. Apenas um exemplo, o artigo 24 de nosso Código Penal: “Considera-se em estado de necessidade quem pratica o fato para salvar de perigo atual, que não provocou por sua vontade, nem podia de outro modo evitar, direito próprio ou alheio, cujo sacrifício, nas circunstâncias, não era razoável exigir-se”. Um fato de si criminoso, passa a não ser criminoso, quando acontece sob o estado de necessidade.

São numerosos os exemplos, poderia citar o furto famélico; outro, sacrificar um cão de outrem, quando o animal está na iminência de lesar gravemente uma idosa na rua. Temos os chamados excludentes de ilicitude. O estado de necessidade não se aplica apenas a casos individuais. Vale para grupos sociais, instituições. Os princípios supra aludidos legitimaram, é entendimento corrente, o rompimento do general Charles de Gaulle com o governo constituído de Vichy (em alguma medida, títere da Alemanha nazista vitoriosa), sua imediata fuga para Londres, onde formou um governo provisório. Reitero, a doutrina a respeito é ampla, antiga, largamente aceita, tem por base as duas máximas acima mencionadas. Colocá-la em pauta enriqueceria muito o debate público, tirando-o do “bas-fond” dos xingatórios e das ameaças. A mais, é tarefa facilmente ao alcance de constitucionalistas. Seria antídoto contra a calcificação das posições, realidade social destacada com clareza por Felipe Nunes, hoje generalizada no Brasil.

Advertência oportuna. Divulguei dias atrás, 23 de março, o artigo “Esclarecendo apagões — em especial os não provocados pela ENEL”. Mostrava a falta de rumo, melhor, o rumo demolidor, dos programas de privatização no Brasil que, em larga medida, são transferências de estatais brasileiras para estatais estrangeiras, em especial chinesas. Uma destas estatais é a ENEL, que padece das mazelas de praticamente todas as estatais, de momento no centro de ácida polêmica por causa dos apagões sem fim que infelicitam a capital paulista. Hoje, 29 de março, no “Estadão”, Elena Landau, traz lúcido artigo “No escuro” em que aponta o perigo de reestatização, programa evidente do governo petista, fortalecido pelo mau serviço prestado pela ENEL aos consumidores. Denúncia meritória e oportuna, que poderia a meu ver ser mais ampla e contundente. Faltou-lhe ponto crucial: a ENEL é estatal italiana, dirigida pelo governo da Itália.