Plinio Maria Solimeo
Praticamente todos os povos, mesmo os que viveram antes da era cristã, tinham alguma forma de música para se dirigirem à deidade. Resquícios disso aparecem em documentos muito antigos, como aquele encontrado em Nippur, na Babilônia, em torno do ano de 1400 AC, numa tabuinha contendo instruções fragmentárias para se cantar uma música de memória. Isso porque não se conhecia ainda um modo de registrar os sons. Uma música tinha então de ser passada vocalmente, de memória, de pai a filho, de mestre a discípulo.
Tal se dava ainda no século VII de nossa Era, como no-lo revela a declaração do erudito e teórico musical espanhol Santo Isidoro de Sevilha [ao lado], falecido no ano de 636, considerado o homem mais douto do seu tempo. Ele afirma que uma música, “a menos que os sons sejam mantidos pela memória do homem, eles perecem, porque não podem ser escritos”[i].
Mesmo na Igreja primitiva, por não serem as melodias litúrgicas muito numerosas e de uso diário, “eram facilmente perpetuadas pela transmissão oral entre o clero, os cantores e o povo; mas, à medida que o hino cristão se desenvolveu com a expansão da liturgia, e à medida que o número de festas aumentou, as melodias tornaram-se numerosas demais para serem aprendidas e retidas pela memória sem a ajuda de alguns meios imutáveis”[ii].
Foi por isso que em meados do século IX começou a desenvolver-se nos mosteiros da Europa certa forma de registrar os neumas (notas musicais, sobretudo utilizadas no canto gregoriano) empregando pequenos símbolos como notas. O problema com esse método se prendia ao fato de apresentar apenas contornos melódicos, não permitindo que a música fosse lida ou cantada a não ser com a orientação de alguém que já a conhecesse. Por isso era utilizada principalmente nos mosteiros religiosos.
Finalmente, para chegarmos ao nosso objetivo, surgiu na Itália, no fim do século X e início do XI, um monge beneditino — Guido D’Arezzo —, genial teórico musical que desenvolveu um novo sistema de notação indicando a altura do som da música mediante linhas e espaços.
O seu grande aperfeiçoamento consistiuem utilizar os espaços entre os versos e “em indicar, através da combinação das letras do alfabeto com os sinais neumáticos, não só os vários intervalos da melodia, mas também o seu ritmo”[iii].
Na época ainda se utilizava uma pauta com quatro linhas, em vez de cinco, como atualmente, porque eram suficientes para a escrita da melodia gregoriana.
O impulso dado por Guido D’Arezzo ao progresso musical perdurou durante toda a Idade Média e favoreceu especialmente a entãoincipiente polifonia, que avançou com a nova notação musical.
A inovação de Guido D’Arezzo
Também conhecido como “Guido Monaco”, Guido D’Arezzo nasceu em Arezzo, na Toscana, e pelo que se infere de um manuscrito de sua obra Micrologus, sua composição foi terminada na idade de 34 anos, durante o pontificado de João XIX (entre 1023 e 1033), enquanto alguns historiadores limitam seu nascimento entre os anos 994 e 998 da nossa Era.
O próprio monge beneditino e músico deixou para a posteridade em sua Epistola Miachaeli monaco Pomposiano uma descrição ingênua, mas viva, de sua agitada e provada vida, e de seu triunfo final sobre seus oponentes.
Segundo The Catholic Encyclopedia, ele ingressou como monge e foi educado no mosteiro de St. Maur-des-Fosses [foto ao lado], perto de Paris, embora alguns autores afirmem que foi no mosteiro de Pomposa [foto abaixo].
Muito dotado para a música, dedicou-se a ela com ardor. No início de sua carreira, observou a confusão que prevalecia no ensino e na execução de melodias litúrgicas em geral e no seu mosteiro em particular. Começou então a desenvolver seus princípios de notação, tendo como base um tratado de música de Odo de Glanfeuil, abade de Saint-Maur (séc. IX). Falaremos disso mais adiante.
Suas inovações e consequente fama tornaram-no infelizmente impopular entre seus irmãos de hábito. Ele decidiu então mudar-se para o mosteiro de Pomposa, na costa adriática perto de Ferrara, na Itália. Esta abadia fora fundada no século IX[iv].
Entretanto, também ali ocorreu o mesmo: inveja, intrigas e calúnias, que o levaram a pedir admissão no mosteiro de Arezzo em data incerta, durante o mandato de Teodaldo como Bispo de Arezzo (ou seja, entre 1033 e 1036) e enquanto Grunwald era abade do mosteiro. “Graças à sua fama como músico, Teodaldo o encarregou da formação dos cantores de sua Catedral. Ali ele escreveu sua obra Micrologus de disciplina artis musicae, considerado o mais importante tratado de música de sua época”[v].
Foi nesse período que Guido aperfeiçoou o novo sistema de notação que trouxe tanta ordem e clareza ao ensino da música.
Por não considerar prática e didática a notação musical então existente, a fim de que seus estudantes pudessem memorizar com mais facilidade o som exato de cada uma das notas musicais, ele decidiu renomeá-las. Utilizou para isso um hino em louvor de São João Batista, Ut queant laxis, tomando a primeira sílaba de cada frase e atribuindo-lhe um som musical. Assim, dizia o hino:
1 – Ut queant laxis
2 – resonare fibris,
3 – Mira gestorum
4 – famuli tuorum
5 – Solve polluti
6 – labii reatum
Mais tarde, no século XVII, o musicólogo e humanista italiano Giovanni Battista Doni (1595-1647), para facilitar o canto com a terminação das sílabas em vogal, renomeou a nota Ut para Do (de Dominus) no solfejo. Posteriormente foi criada a nota Si, tirada das iniciais do nome de São João, em latim: Sancte Ioannes, novamente facilitando o canto com a terminação de uma vogal.
No século XX, a Irmã Cecília Gertken, OSB (1902-2001), para que os leitores de língua inglesa pudessem saborear o sentido das notas, parafraseou-as, preservando entretanto as sílabas principais e a métrica original. Abaixo, o texto em inglês e sua tradução para o português:
Doletour voices Deixe nossas vozes
resonatemostpurely, ressoar mais puramente
miracles telling, contando milagres
fargreaterthanmany; muito maior do que muitos;
soletourtonguesbe então deixe nossas línguas serem
lavish in your praises, prodígio em seus louvores
Saint John the Baptist.São João Batista.
Com o Papa
Voltando a Guido D’Arezzo, como através de seu método os cantores aprendiam rapidamente novas canções, isso redundou em fama para ele, atraindo a atenção de outras partes da Itália, inclusive de Roma.
Com efeito, por volta de 1028, o Papa João XIX enviou mensageiros a Guido, para o instarem a ir a Roma a fim deexibir seu antifonário e explicar seu método de ensino.
Agradavelmente surpreso com a facilidade de Guido em decifrar e aprender melodias sem a ajuda de um mestre, o Sumo Pontíficeo convidou a fixar-se em Roma, para instruir o clero romano no novo sistema.
Entretanto, sua má saúde eo calor úmido da Cidade Eterna no verão levaram-noa deixar Roma, com a promessa de voltar no inverno.
Últimos anos
No caminho de volta, Guido passou pelo mosteiro de Pomposa, a fim de visitar o abade, seu homônimo, sendo recebido de braços abertos. Sua estada no entanto parece ter sido de curta duração, pois logo retornou a Arezzo.
Segundo o historiador M. Faulty (Studi su Guido Monaco, 1882), Guido terminou seus dias em Arezzo.
Outros historiadores, contudo, com base na crônica da época e outras evidências, afirmam que ele foi para um mosteiro camaldulense perto de Avellano. Lá elese encontrou com seu íntimo amigo, o futuro São Pedro Damião (1007-1072), e faleceu no ano1050.
Uma tradição antiga afirma que ele foi beatificado imediatamente após sua morte, porém o fato não foi confirmado.
Seu legado
Entre as obras autênticas atribuídas a Guido D’Arezzo estão: Micrologus de disciplina artismusicae, cujo tratado, especialmente o capítulo XV, é inestimável para os estudantes de hoje, que se esforçam em aperfeiçoar a forma rítmica e melódica original do canto gregoriano”[vi].“Primeiro tratado completo sobre a prática musical, foi empregado nos mosteiros durante a Idade Média e, a partir do século XIII, também nas universidades”[vii]. Regulae de ignoto cantu, prólogo ao seu antifonário em notação de pauta; Epistola Michaeli monaco de ignoto cantudirecta. Todos estas foram reproduzidas nos Scriptores, ii, 2-50”.
[i]Cfr. https://en.wikipedia.org/wiki/Musical_notation#Modern_staff_notation
[ii]Otten, Joseph. “Guido of Arezzo.” The Catholic Encyclopedia, https://www.newadvent.org/cathen/07065a.htm
[iii]Id.
[iv]https://es.wikipedia.org/wiki/Abad%C3%ADa_de_Pomposa
[v]https://www.aciprensa.com/noticias/este-es-el-monje-benedictino-que-creo-el-nombre-de-las-notas-musicales-95550?utm_campaign=ACI%20Prensa%20Daily&utm_medium=email&_hsmi=234659203&_hsenc=p2ANqtz—PaXDy2IQNZhdSxkZFvOPNMJMYlcl59B0rmVoBV_eJkWf_VSL1BVjB1QZpkB_w4NFNQ_IPivrDVd_-kmcxm3AkfZAGA&utm_content=234659203&utm_source=hs_email
[vi] The Catholic Encyclopedia
[vii] ACI op.cit.