Santa Joana Elisabeth Bichier des Âges

De ascendência nobre, intrépida durante a ímpia Revolução Francesa, fundou com a ajuda de Santo André Fournet uma congregação religiosa e auxiliou São Miguel Garicoits a consolidar a dele. Essa santa tem sua festividade celebrada no dia 26 de agosto.

  • Plinio Maria Solimeo

 Joana Elisabeth Lúcia Bichier des Âges nasceu em 1772 no Castelo des Âges, de sua patriarcal e aristocrática família, cerca de Le Blanc, na antiga província do Poitou, no Vale do Loire, sendo batizada no mesmo dia. Única menina, cresceu mimada por seus três irmãos.

 Sua primeira educação ficou a cargo da mãe, muito religiosa, que criou os filhos segundo os preceitos da santa religião. Elisabeth, como passou a ser chamada em família, tinha um temperamento aprazível e desperto, aprendia com facilidade, e desde pequena gostava muito de rezar.

O Pe. André Hubert Fournet (dir.), pároco da igreja subterrânea de Maillé, celebra secretamente uma missa numa fazenda em Marsyllis. O quadro representa o mometo da comunhão de Santa Elisabeth

         Ela continuou seus estudos em Poitiers, findo os quais voltou para auxiliar a mãe na administração do imenso castelo familiar, em cuja escola aprendeu a dirigir a numerosa criadagem. O tempo que lhe sobrava à tarde, ela o empregava indo à igreja da vila, onde ficava longo tempo em adoração ao Santíssimo Sacramento.

Durante a Revolução Francesa

         No ano de 1789 estourou a diabólica Revolução Francesa e, com ela, as restrições à prática da religião. Como aos poucos a situação foi se tornando muito difícil para os nobres, Lourenço, o filho mais velho dos Les Âges, resolveu emigrar. No início de 1792 seu pai adoeceu, falecendo no dia 16 de janeiro.

         Os acontecimentos se precipitavam. A Assembleia votou a cismática Constituição Civil do Clero, que obrigava todos os sacerdotes a lhe prestar juramento. Muitos padres timoratos ou oportunistas o fizeram, passando a ser chamados de juramentados. Mas uma boa maioria resolveu recusar-se a prestar o juramento, passando a viver na clandestinidade. Esses valorosos sacerdotes eram chamados de refratários.

         Quando os revolucionários se deram conta de que Lourenço havia emigrado, começaram a ameaçar sua família e confiscaram o castelo Des Âges. A castelã e Elisabeth tiveram de ir para uma casa que tinham em Le Blanc.

         Certo dia o comitê revolucionário da cidade convidou Elisabeth para representar a sacrílega “Deusa Razão”, numa comemoração revolucionária. Com a categórica recusa da jovem, começaram as retaliações quase que diárias contra ela e sua mãe. Quiseram obrigá-las a jurar lealdade à Constituição, mas se recusaram com firmeza. Foi então que os revolucionários, vasculhando o castelo, descobriram no celeiro algumas armas que tinham pertencido ao castelão em sua juventude. Sob a alegação de que eram para os contra-revolucionários, prenderam mãe e filha em Châteauroux. No entanto, um dos irmãos de Elisabeth, que por fraqueza tinha se juntado às forças da Revolução, conseguiu obter a liberdade de ambas.

Sacramentos na clandestinidade

         Em 1796 elas se mudaram para uma propriedade de campo da família, chamada La Guimetière, próximo de Théthines. Elisabeth sentia muito a falta da religião, sobretudo da confissão, da Missa e da comunhão, pois o pároco local, juramentado, era rejeitado pelo povo. Como desde a infância ela se consagrara à Virgem Maria, tinha uma grande atração pela vida contemplativa e de consagrar-se a Deus.

         Em certo dia do ano de1798 um antigo criado do castelo procurou em segredo Elisabeth e lhe comunicou que um sacerdote refratário, Pe. André Hubert Fournet, pároco da igreja subterrânea de Maillé, iria celebrar secretamente uma missa numa fazenda em Marsyllis, a 15 quilômetros de distância. Na noite seguinte, conduzida pelo criado, a intrépida jovem foi no lombo de um asno assistir à Missa. Após ouvi-la em confissão, o Pe. Fournet começou a ouvir a dos inúmeros presentes.

         Ocorreu então um incidente. Devido à sua nobreza, os camponeses abriram caminho para que ela passasse na frente. Vendo isso, o enérgico sacerdote interveio: “Vós credes, Senhorita, que para atendê-la vou deixar para trás essas mães de família e esses camponeses que vieram de várias léguas reclamar meu ministério?”Ao que humildemente Elisabeth respondeu: “Meu pai, bastará que vós consintais em me ouvir depois deles.” E assim ocorreu. Ela esperou durante toda a noite e só foi atendida ao nascer do sol.

A pedido do Pe. Fournet, Santa Elisabeth começou uma escola de catequese para crianças em La Guimetière, que era a casa da família. Na foto, a propriedade como se encontra hoje.

Primórdios de uma grande obra

         Na confissão, Elisabeth aproveitou para abrir seu coração ao Pe. Fournet, comunicando-lhe seu desejo de se dedicar a Deus. Ora, como o sacerdote estava muito preocupado com seus paroquianos, que tinham perdido toda possibilidade de educação religiosa e cívica para os filhos durante o verdadeiro redemoinho que caíra sobre a França com a Revolução, pediu então a Elisabeth que, em vez de se consagrar a Deus numa Ordem contemplativa, abrisse sua casa para a catequese das crianças locais. Foi assim que, depois de obter a permissão da mãe, a jovem começou uma pequena escola em La Guimetière.

         Nascido em 1752 e falecido em 1834, o Pe. André Fournet exilou-se na Espanha no início das perseguições à Igreja na França. Mas voltou ao seu país em 1797 para exercer seu ministério na clandestinidade. Foi no ano seguinte que se deu o encontro entre os dois fundadores, acima relatado. Ele foi beatificado em 1926 por Pio XI, que o canonizou no dia 4 de junho de 1933.

Relativa volta da normalidade

         Enquanto isso, o golpe de Estado de 18 de brumário do ano VIII— segundo o calendário revolucionário, correspondendo a 9 de novembro de 1799 pelo gregoriano —, quando o governo do Diretório foi derrubado por Napoleão e instituído o Consulado.

         Muito oportunista, Napoleão logo se tornou o Primeiro Cônsul. Entre outras medidas que tomou para sanar em parte o estrago da Revolução e usar a religião como instrumento do poder político, assinou a Concordata de 1801 entre a Igreja Católica e o Estado francês. Esse acordo, aprovado pelo Papa Pio VII como mal menor para obter que a Igreja fosse restabelecida no país, dava ao governo o direito de confiscar as propriedades da Igreja, propondo-se, em troca, a amparar o clero. Na Concordata, Napoleão reconhecia o catolicismo como religião da maioria dos franceses, mas se arrogava o direito de escolher os bispos, que deveriam ser aprovados depois pelo Papa.

Congregação das Irmãs da Cruz

         Em 1804 faleceu Madame Des Âges. O Pe. Fournet então propôs a Elisabeth que recrutasse um grupo de jovens dispostas a formar uma congregação religiosa. Tendo conseguido quatro companheiras, no ano seguinte foi com sua doméstica Mariana Meunier a Poitiers para aprender os rudimentos da vida religiosa com a Congregação da Divina Providência. Quando voltaram a La Guimetière em 1806, mais duas amigas se juntaram a elas.

         Com o relativo restabelecimento da normalidade na França, Elisabeth empregou todas suas relações e influências para recuperar os bens da família confiscados durante a Revolução, para ter meios materiais para levar avante sua obra.

         Em 1807 outra candidata junta-se ao pequeno grupo. Para albergá-lo e dispor de um lugar para seu trabalho, Elisabeth adquiriu o castelo local. Lá, as seis componentes da comunidade pronunciaram seus votos religiosos, estabelecendo com o Pe. Fournet a Congregação das Irmãs da Cruz.

         A pequena congregação começou logo a se expandir e multiplicar suas escolas para crianças, ao mesmo tempo que crescia também o cuidado com os doentes. Por volta de 1820 as irmãs obtiveram um mosteiro em La Puye, que havia pertencido à Ordem de Fontevrault e estava vago. Os mosteiros dessa Ordem, nascida na Idade Média, eram duplos, e neles monges e monjas viviam em edifícios separados, mas governados por uma Abadessa. Durante a Revolução Francesa a Ordem já estava decadente. Os religiosos foram expulsos de seus mosteiros e a Ordem se extinguiu. Santa Elisabeth fez de Fontevrault a Casa Mãe das Irmãs da Cruz, o que continua a ser até hoje.

Encontro com São Miguel Garicoits

São Miguel Garicoits

         Santa Elisabeth teve de se submeter a uma intervenção cirúrgica muito dolorosa em Paris. O médico que a operou e seus auxiliares ficaram muito impressionados com a coragem da doente, admirando sua simplicidade, amabilidade e fé. Isso repercutiu fora do hospital, levando algumas damas da alta sociedade da capital a visitar a santa e lhe suplicar que abrisse uma casa na Cidade Luz.

         No ano de 1825, um jovem sacerdote, Miguel Garicoits (1797-1863), foi nomeado professor de filosofia no seminário maior de Bétharram, nos Pirineus Atlânticos. Seu bispo disse: “O Pe. Garicoits é um santo que eu venero; eu quero fazê-lo diretor de todas nossas religiosas, e vereis que ele reavivará na diocese o espírito cristão e religioso.”

         Ora, as freiras de Santa Elisabeth estavam nesse número, porque haviam fundado em Igon, a apenas quatro quilômetros de Bétharram, uma casa das Filhas da Cruz. Foi nela que no ano de 1828, Miguel de Garicoits se encontrou com Santa Elisabeth de Bichier. Em contato com suas freiras e venço como elas praticavam com alegria e simplicidade a pobreza evangélica, Miguel compreendeu que o Coração de Jesus o chamava para o radicalismo dos santos[i]. Por outro lado, com sua experiência na vida espiritual e na direção das religiosas, Santa Elisabeth pôde dar-lhe muitos conselhos que o ajudaram a fundar a comunidade de sacerdotes dedicada ao serviço missionário, a Congregação do Sagrado Coração de Jesus de Bétharram. Ele dirá dela: “Eu lhe devo minha conversão. […] Sou-lhe devedor de tudo quanto fiz de bom. Eu não era senão o executor de seus conselhos”. De maneira que o santo chama essa graça recebida por intermédio de Santa Elisabeth de “sua conversão”. São Miguel teve contato também com o Santo Cura d’Ars, que lhe enviou Santa Bernadette Soubirous para lhe fazer uma consulta sobre sua vida espiritual.

A caixa com as relíquias de Santa Joana Elisabeth é levada num carro puxado por dois cavalos brancos para a capela da Congregação das Filhas da Cruz, em La Puye, no dia das cerimônias de canonização (6 de julho de 1947).

Morte e glorificação

         O lema de Santa Elisabeth Des Âges era: “Glorificar a Deus e O fazer glorificar pelos pequenos e pelos pobres”. Apesar de ter uma natureza robusta, no fim da vida ficou muito enfraquecida pela doença e pelos sofrimentos. De modo que veio a falecer no dia 26 de agosto de 1838. À sua morte, as Filhas da Cruz se compunham de 600 religiosas, disseminadas por mais de 100 comunidades.

Elisabeth foi beatificada por Pio XI em 1934 e canonizada por Pio XII em 1947, no mesmo dia que São Miguel Garicoits. Seus restos mortais repousam em um escrínio na Casa Mãe, em La Puye.

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Notas:

1.Cfr. https://crc-resurrection.org/toute-notre-doctrine/renaissance-catholique/histoire-eglise/19e-siecle/saint-michel-garicoits.html

Outras obras consultadas:

https://fillesdelacroix.com/main.php?p=126

https://en.wikipedia.org/wiki/Joan_Elizabeth_Bichier_des_%C3%82geshttps://fr.wikipedia.org/wiki/Jeanne-%C3%89lisabeth_Bichier_des_%C3%82ges


[i]Cfr. https://crc-resurrection.org/toute-notre-doctrine/renaissance-catholique/histoire-eglise/19e-siecle/saint-michel-garicoits.html