
A respeito da breve, mas muito admirável vida de Teresinha Setúbal, adolescente paulista falecida em odor de santidade em 1938, já publicamos duas matérias (edições de abril e junho de 2021 [da revista Catolicismo]). Devido ao grande interesse que ela suscitou aos seus leitores — assim como o artigo sobre seu pai, o escritor Paulo Setúbal (edição de agosto de 2021 [da mesma revista]) —, publicamos hoje um outro artigo a respeito deles.
Paulo Setúbal disse de si: “fui um cristão que se converteu ao cristianismo”. Sobre ele, Plinio Corrêa de Oliveira escreveu: “No ocaso prematuro de sua vida, se voltou para Deus em um magnífico gesto de contrição, que encheu de nobreza, de esplendor e de santidade os últimos meses de sua existência terrena” (O Legionário, 26-9-1937).1
Da Redação de Catolicismo
Paulo Setúbal visto por famosos escritores
- Plinio Maria Solimeo
Poucos escritores brasileiros famosos receberam de seus pares um cortejo de elogios tão unânime como Paulo Setúbal. Elogia-se nele sobretudo a cativante personalidade, sempre alegre, fruto de uma bondade contagiante que conquistava todos os corações.
Hoje, esse escritor, que se tornou o mais lido do País em sua época, é pouco conhecido.
Por isso apresentaremos uma rápida biografia dele, a fim de ressaltar como suas qualidades eram vistas pelos escritores de seu tempo.
Nascido em Tatuí, interior de São Paulo, em 1º de janeiro de 1893, órfão de pai aos quatro anos e um dos nove filhos pequenos a quem coube à mãe o ônus de cuidar, Paulo de Oliveira Leite Setúbal — eis seu nome completo — foi advogado, deputado estadual, jornalista, ensaísta, poeta e romancista, membro das Academias Paulista e Brasileira de Letras, de Institutos Históricos e Geográficos de São Paulo e do Brasil.
Embora sua mãe fosse muito religiosa, durante os estudos do filho na capital paulista, ele sofreu as más influências de outros estudantes, tornando-se cético, quase ateu. Após formar-se em Direito, Paulo decidiu fazer jornalismo e obteve um cargo no jornal “A Tarde”, no qual publicou com êxito suas primeiras poesias.
Foi nessa época que ele começou a sentir os primeiros sinais da tuberculose, que o obrigaria a frequentes interrupções no trabalho para repouso. A esse respeito, diz o escritor Fernando Jorge em sua excelente biografia de Setúbal, que consultamos fartamente:
“Em tal momento dramático, ele ainda não tinha visto a dor como um veículo de aprimoramento espiritual e nem havia ocorrido, como disse no Confiteor, o encontro consigo mesmo. A sua alma torturada não ouvia a palavra de Cristo, que poderia dar-lhe força, paz, resignação, embora no seu íntimo, adormecida, palpitasse uma religiosidade cheia de misticismo.”
Com o organismo enfraquecido pela tuberculose, Paulo se tornou fácil presa da terrível gripe espanhola em 1918. A fim de se recuperar, partiu para Lages, em Santa Catarina, onde morava seu irmão mais velho. Lá se tornou um advogado bem-sucedido e muito procurado. Dois anos depois, cansado de tudo, voltou para São Paulo, onde estabeleceu uma banca com razoável sucesso.
Em 1920 juntou algumas de suas poesias e as apresentou a Monteiro Lobato, então um editor de sucesso. Nascido em Taubaté, Lobato narra assim seu primeiro encontro com Setúbal:
“Setúbal era o encanto feito homem. Impossível maior exuberância, maior otimismo, maior entusiasmo – mais fogo. Dava-me a impressão duma sarça ardente — e talvez por isso se fosse tão cedo; queimou-se demais, ardeu numa vitoriosa chama contínua […]. O ímpeto de Setúbal, a tremenda força da sua simpatia irradiante, inundante e avassalante, fez que sem nenhum exame os originais voassem daquele escritório para a tipografia”, resultando no primeiro dos muitos livros que escreveria Paulo Setúbal, A alma cabocla, de poesias.

Iniciava-se assim a principal fase da produção literária de Paulo Setúbal. Pode-se dizer que seu sucesso foi quase instantâneo. Sobre A alma cabocla, seu primeiro livro, diz o escritor Duque Estrada: “Aqui está um real e autêntico poeta que, embora sem a palheta rica dos grandes pintores, consegue falar à alma, despertar sentimentos delicados, e interpretar a verdadeira poesia da natureza.”
O livro seguinte, A Marquesa de Santos, encontrou tal fama, que foi traduzido para o francês, o croata e o inglês, tendo sido na Argentina a base e a fonte de inspiração de um filme com o mesmo nome. O Príncipe de Nassau, que se seguiu, teve o mesmo sucesso.
De seu livro A bandeira de Fernão Dias, o irônico Medeiros de Albuquerque também não poupou elogios: “O romance é excelente. […] Fernão Dias achou um poeta maravilhoso, Bilac, que o imortalizou no ‘Caçador de esmeraldas’, e acha agora, no autor, um romancista admirável que o faz reviver de modo a perpetuar-lhe invejável fama”.
Sobre outros livros de Setúbal, Agripino Grieco sentenciou: “O ouro de Cuiabá e Os Irmãos Leme são dois livros de um romancista que realiza em nossa terra o ideal, tão raro aqui, do narrador empolgante, capaz de prender o leitor mais desatento à sucessão dos episódios, à mutabilidade dos cenários, à marcha das figuras através de ambientes os mais desencontrados.”

Em 1922 Paulo se casa com Francisca de Souza Aranha, pertencente a uma das mais aristocráticas famílias de São Paulo, com quem tem três filhos: Olavo, Maria Teresa ou Teresinha (vide link abaixo2) e Vicentina. O escritor se entendeu tão bem com o sogro, Olavo Egídio de Souza Aranha, que em toda a página inicial de sua obra A bandeira de Fernão Dias, expressou o seu sentimento pelo falecimento dele em 1928: “À memória inapagável de Dr. Olavo Egídio de Souza Aranha, meu sogro e meu melhor amigo”.
Transcrevemos a seguir alguns depoimentos de outros contemporâneos de Paulo Setúbal que discorrem sobre suas qualidades. Um dos pontos que eles ressaltam é o fato de o escritor nunca perder sua classe de homem bem educado, afeiçoado mais em admirar o que via de bom nos outros, do que em criticar.
O jornalista Silveira Peixoto, descrevendo a exuberância do escritor, diz: “Paulo seguia os seus caminhos, na moléstia que o minava e ia levá-lo. Vivia em São José dos Campos — e aparecia-nos de quando em vez, para nos trazer um daqueles artigos maravilhosos, para cuidar das edições de seus livros. Eram dias de festa – porque, tudo não obstante, apesar da doença e porque sabia vencê-la, sua presença, só por si, era uma festa. Falava com todos, estava sempre num entusiasmo.”
Cassiano Ricardo, em discurso na Academia Brasileira de Letras depois da morte de Paulo, diz: “Alvissareiro como um raio de sol. Jamais triste, encorujado […] sua alegria já era comovedora. A gente pensava na doença que o ia minando”.
O escritor Affonso de Escragnolle Taunay tornou-se íntimo amigo de Setúbal, e sempre que escrevia algum livro, nunca deixava de consultá-lo. Taunay o chamava de meu “bom, querido e admirado amigo”.
O historiador Vinício Stein Campos descreve Setúbal discursando em Capivari, por ocasião de sua campanha para a Assembleia Legislativa de São Paulo, “gravata ao vento, a cabeleira ondulada refulgindo ao sol, os gestos largos, os olhos luminosos irradiando simpatia, a voz quente, musical e arrebatadora como seu linguajar, empolgou o grande auditório com seu magnífico improviso”.
No seu discurso de recepção na Academia Brasileira de Letras, Paulo Setúbal fez um sentido preito de homenagem à sua extremosa mãe: “Deixai, pois, senhores acadêmicos, que o meu coração voe para a casa modesta do bairro sem luxo, entre no quarto do oratório, ajoelhe-se diante da velha branquinha, beije-lhe as mãos e, na brilhante noite engalanada deste triunfo, diga-lhe por entre lágrimas: minha mãe, Deus lhe pague!”.

Finalmente, em maio de 1937, chega para o ilustre escritor tornado católico praticante, a hora de se apresentar diante do trono de Deus. Ele quer morrer com dignidade e humildade. Deseja um enterro humilde e ser amortalhado no hábito da Ordem do Carmo, na qual ingressara como Irmão Terceiro em sua juventude.
Aos que se reúnem em torno de seu leito de morte, ele recomenda: “Diga aos meus amigos que morro feliz, porque tenho fé. Não quero viver ou morrer, seja o que Deus quiser. Deixo o mundo, que nada vale, para ir me encontrar com Cristo. Não fiquem tristes […]. Que são vinte ou trinta anos de separação diante da eternidade, onde estaremos todos juntos? Morro feliz, vou enfim ver o meu Jesus”.
Às quatro horas da madrugada do dia 4 de maio de 1937, após receber com piedade a extrema-unção, ele morre placidamente, sem nenhuma queixa, aos 44 anos de idade.
Ao comentar sua morte, o historiador Affonso de Escragnolle Taunay declarou: “Em Paulo Setúbal tão intimamente se fundiam a inteligência e a cordialidade que não consigo conceber haja alguém algum dia tido contato com tão formosa individualidade superior, sem que desse encontro lhe não tenha ficado a mais grata e hoje a mais saudosa impressão.”
Um grande sacrifício de Paulo Setúbal

Quem lê os depoimentos acima e algumas obras do escritor, fica com uma ideia um tanto romantizada de sua existência, provocada pelas aparências de uma vida despreocupada e alegre que ele procurava dar. A realidade é outra: Paulo Setúbal convivia desde jovem com o sofrimento de uma tuberculose inexorável, contra a qual lutava continuamente, com sua natureza exuberante, para se manter na linha do bom caminho. É o que se desprende do que com humildade e talento ele afirma no prólogo de seu livro Confiteor:
“A minha vida, é certo, nada tem de grande, nem de brilhante, nem de singular que mereça letra de forma. É uma vidinha como mil outras. Mas pode ser que, não por uns pequeninos e frágeis êxitos que teve, mas pelos seus altos e baixos, pelas suas quedas e soerguimentos, pelo seu fadário terreno tão rudemente cortado, pelos pedaços agoniantes de que se entreteceu, pelas longas e longas horas passadas enfadonhamente na cadeira de lona [por causa da tuberculose], horas que a revolta antigamente amargava, horas hoje tão alegremente e tão levemente suportadas, pode ser que esta minha obscura vida de doente sirva acaso de lenitivo e de soerguimento a algum desconhecido irmão de infortúnio que, com o seu impotente desespero arraste, por essas estações de cura a fora, dias excruciantes de amargura e de sucumbimento […]. Que este caderno não seja outra coisa senão a desenfreada confissão de como, através do sofrimento, eu me cheguei totalmente a Cristo. Cheguei-me a Cristo, e sou feliz”.3
Desde a sua conversão, Setúbal se tornou um apóstolo do sofrimento oferecido a Deus em holocausto pelos seus pecados.
Ele insiste: “É preciso repetir ainda, repetir sem cessar, repetir a vida inteira: o sofrimento é dádiva do céu. É tesouro que nem todos têm a dita de possuir. Foi pelo sofrimento que eu conheci de perto o meu Amigo. Aquele que reconstruiu a minha morada. Ele se empenhou sempre, com amorável tenacidade, a que eu me chegasse a Ele através dos reveses que me mandou”, a fim de transformá-lo radicalmente no “‘homem novo’ do Evangelho”.
As tentações fazem parte do sofrimento que devemos suportar para sermos fiéis. E o demônio, como diz São Pedro, anda em redor de nós como um leão prestes a nos devorar. E às vezes fraquejamos.
Foi o que sucedeu com Paulo Setúbal. Apesar de estar levando uma vida virtuosa, cumprindo exemplarmente os Mandamentos, enfrentou uma forte tentação, justamente no seu ponto fraco: o de escritor.
Diz ele: “Procurou-me certo dia meu editor e, com instância, solicitou-me que lhe desse um novo livro”.
Para ele, “a tentação era radiosa”. E recordou-se de um romance que havia escrito na mocidade, mas nunca publicara, por se afastar da moral cristã. Seu primeiro movimento, ao relê-lo, foi: “Não publico este livro. Absolutamente não publico. Este livro é tão-somente um livro de paixões más e desgrenhadas. Um livro ruim. Não tem nenhuma elevação moral. Não edifica a ninguém. É livro que um escritor, sendo católico, não tem o direito de lançar a público.”
Contudo, a tentação voltava à carga. E em vez de afastá-la com vigor, começou a conversar com ela. Quando releu o romance, descobriu nele “grandes qualidades”. Retocou-o, e o deu à sua esposa para datilografá-lo.
Lendo-o, Dona Francisca perguntou ao marido: — Você vai publicar este livro?
À resposta afirmativa, ela insistiu: Pense melhor. Você mudou muito nestes últimos tempos. Você é hoje um homem crente, um católico praticante. Você vai mesmo publicar um livro como este?
Resposta de Paulo: Não seja beata, mulher!
Ela insistiu, e esta insistência de Francisca doía na alma de Paulo, que confessa ter irrompido uma luta dentro de si, pois “não se tratava mais de publicação ou não publicação dum simples livro, um romancezinho que não ia mudar a face da terra. Nada disso. Tratava-se, isso sim, da luta entre o homem que eu fui e o homem que eu queria ser. Entre o homem novo e o homem velho”.
Um sacerdote a quem consultou, aconselhou-o a não publicar. Contudo, disse ele: “Mal o padre virou as costas, mal eu me vi a sós comigo, pegou a referver no meu íntimo uma procela rugidora. Todas as forças subconscientes do meu ser, assanhadas, como que atiçadas por estranha mão, desencadearam-se iracundas contra o padre.” — De quem era essa “estranha mão”, senão do demônio? Paulo decidiu publicar o romance.
No momento em que se dispunha a procurar o editor com o texto do romance, Paulo ouviu o sino de uma igreja e mudou de ideia. Foi à Missa, confessou-se e comungou, e depois voltou para casa “iluminado”. Repleto de bom humor, conversou com todos, brincou, riu. Pegando um jornal, foi até o quarto da filha doente. Indagou: “Como vai, filhoca?”
Essa filha, Maria Teresa, chamada em casa de Teresinha, nasceu em São Paulo no dia 23 de abril de 1924. Em sua curta vida deu raros exemplos de santidade e união mística com o Divino Menino Jesus, a Quem se ofereceu como vítima expiatória. Ela confidenciava à sua mãe o que lhe acontecia na alma, e Dona Francisca, por inspiração divina, passou a anotar diariamente os fenômenos místicos de que a filha era objeto. Por recomendação do confessor da menina, sua mãe, antes de morrer, deixou esse relato com a filha mais nova, Vivi, para que ela levasse depois adiante os trâmites visando a beatificação da irmãzinha. Isso nunca foi feito.
Não é, pois, de admirar que no episódio contado pelo pai, Teresinha tenha tido uma comunicação divina sobre o teor do romance que Paulo queria publicar, e lhe pedisse instantemente que não o fizesse.

Voltando ao relato anterior: com o afeto que os unia, pai e filha tagarelaram “com o riso na boca, jovialmente, o coração cheio de sol”. Em seguida, Paulo abriu o jornal e começou a ler, mas a garotinha, de súbito, interrompeu a leitura:
— Papai…
— Que há, minha filha?
— Eu queria que papai rasgasse aquele livro que papai está escrevendo.
Conforme a narrativa de Paulo Setúbal, o coração lhe bateu descompassadamente no peito. Ele olhou assombrado. Tudo podia esperar da filha, admite no Confiteor, “tudo, mas não podia esperar, jamais, ouvir da sua boca de criança, descuidadosa e cândida, um pedido tão sério e tão estonteante como aquele”.
Setúbal perguntou, à maneira de quem deseja não ter dúvida:
— O que é que você está dizendo aí, menina?
Ela repetiu de modo grave:
— Eu queria que papai rasgasse aquele livro que papai está escrevendo.
Diz o escritor: “Não há cor, por mais flamante, que pinte a minha emoção. Como pintá-la? Ouvir naquele momento, depois de tudo o que sucedera, aquela inocente criaturinha, fazer-me aquele pedido — um pedido daquele jeito — é, realmente emoção que tange as cordas mais íntimas dum coração de homem. É emoção que fica vibrando a vida inteira na alma da gente. Eu tive, naquele minuto, a sensação viva, a sensação absolutamente nítida de que ali, na cama, naquela frágil enferma que me falava com sua voz de mel, não estava mais a minha pequerrucha, aquela que eu amava com tão desbordante e tão cálida ternura: estava ali, isso sim, falando pela boca inocente de minha filhinha, um anjo do Senhor, um anjo louro, um anjo fino e leve, que mandado do céu, viera, com a força da sua ingenuidade, ajudar o homem novo, ainda tão fraco em mim, a vencer aquele poderoso homem velho que campeava ovante dentro do meu ser.”
Paulo pegou as mãozinhas da filha e extravasou-se. — Qual era a causa do pedido? Desejava saber. Ela conhecia o assunto, a história narrada no romance? A menina disse que não. Havia ela lido algum capítulo passado à máquina? Mais uma negativa. Lançou outra pergunta: a mãe lhe dera alguma informação sobre a obra? Terceira negativa. O escritor não se conteve:
— Então, minha filha? Então? Por que é que você quer que eu rasgue o meu livro?
A menina explicou: — Não sei por que, papai. Não sei. Mas olhe: há uma coisa aqui dentro, aqui bem dentro.
Pondo com força a mãozinha sobre o coração, a filha de Setúbal concluiu com a frase:
— … que me diz, desde ontem, que papai não deve publicar aquele livro.
Paulo tentou objetar, porém a menina prosseguiu:
— Eu não sei o que é, papai. Não sei. Mas é uma coisa aqui dentro. Uma coisa esquisita. E por isso eu quero que papai rasgue o livro. E quero tanto, tanto, que vou propor um negócio para papai…
Setúbal não pôde deixar de sorrir. Achou curioso a filha lhe propor “um negócio”. E ouviu a proposta:
— Papai me dá, todos os anos, um presente de Natal, não é? O presente de Natal, papai bem sabe, é o presente que eu mais gosto na minha vida. Pois bem: neste ano, como presente de Natal, papai vai fazer o que pedi.
O escritor foi sucinto: — Rasgar o livro?
Duas palavras apenas saíram da boca da menina:
– Sim, papai.
Ele se levantou do divã, rápido. Seu coração batia disparado, as lágrimas lhe saltavam dos olhos. E respondeu, de maneira segura:
– Basta, minha filha, basta! Não fale mais. Você ganhou o seu presente de Natal. Papai vai rasgar o romance.
Setúbal correu ao escritório, agarrou o maço dos originais e as cópias datilografadas, e voltou ao quarto da filha. Ambos, no quarto, picaram as trezentas páginas do romance. Depois, num canto do quintal da casa, uma fogueira engoliu os papéis estraçalhados. Paulo registrou no Confiteor:
“Eu vi, com júbilo, a labareda subir das laudas em tiras. Vendo-as (que singular é a natureza humana!) fiquei em festa. Radioso. A chama, que rompia alegremente do calhamaço, como que atiçava um fogaréu de contentamento no meu coração. Estava feliz. Havia ganho um duro combate. E, na minha felicidade, sem que ninguém reparasse, guardei comigo um punhadozinho daquela cinza.”
As filhas de Setúbal ganharam os presentes que pediram. E Paulo colocou nas mãos de Teresinha uma pequena bonbonnière de louça, embrulhada num papel de seda. Feliz, risonha, ela desatou a fita cor-de-rosa, desdobrou o papel, cheia de cuidados, e encantada ao abrir a bonbonnière, em vez dos bombons, achou lá dentro um punhado de cinza. Enviou a Setúbal “um olhar fulgurante”. Sem pronunciar qualquer palavra, acercou-se do pai, e lhe deu um abraço apertado. Ele perguntou à menina:
— Foi este o presente de Natal que você pediu, não foi, minha filha?
Ela respondeu: – Foi, papai.
E o abraçou de novo. Paulo disse que essa criança havia sido “o inconsciente, o ingênuo, o lírico instrumento” de que Deus se serviu para lhe prestar socorro.
Sem muita virtude e uma ação sobrenatural da graça, uma menina de 12 anos não seria capaz de uma atitude como esta!
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Notas:
- http://catolicismo.com.br/Acervo/Num/0848/P46-47.html
- http://catolicismo.com.br/Acervo/Num/0844/P26-27.html
- As citações que vêm entre aspas no texto, foram todas tiradas da excelente obra do historiador Fernando Jorge, Vida, obra e época de Paulo Setúbal, Geração Editorial, 2003, na qual nos baseamos para este artigo.