CARDEAL MINDSZENTY — Farol glorioso da Igreja e da humanidade

Há 50 anos partia para a eternidade o Cardeal Mindszenty, o heroico prelado húngaro que ensinando e dando o exemplo de jamais dobrar os joelhos diante o leviatã revolucionário, salvou a honra da Igreja e do gênero humano.

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  • Luis Dufaur

O venerável Cardeal Jozsef Mindszenty, Arcebispo de Esztergom e Primaz da Hungria, faleceu em 6 de maio de 1975. Crescia nessa ocasião o descontentamento dos povos subjugados pelo comunismo, produzindo resultados eleitorais impensáveis e conflitos sociais no Ocidente e na própria Rússia comunista.

Entre temores de guerra mundial e colisões comerciais ciclópicas, muitos culpam os líderes da política pelo caos generalizado na economia, na mídia e nas igrejas, com destaque para a Santa Igreja Católica Romana, penetrada após o Concílio Vaticano II pela “fumaça de Satanás”, que, segundo Paulo VI, “entrou no templo de Deus”. Ele afirmou: “Acreditava-se que, depois do Concílio, viria um dia ensolarado para a História da Igreja. Veio, pelo contrário, um dia cheio de nuvens, de tempestade, de escuridão, de indagação, de incerteza”.1

Os povos procuram os responsáveis por essas crises e pelas omissões que levaram a tal situação catastrófica. Mas também se voltam para aqueles que fizeram de tudo para evitá-la. Dentre eles se destaca um herói da Santa Igreja, Primaz da Hungria e regente do reino magiar, vítima das correntes ideológicas e teológicas que nos empurram para o abismo: o grande Cardeal Jozsef Mindszenty.

Humilde origem e resistência ao sistema comunista

Nascido em 29 de março de 1892 na aldeia camponesa de Csehimindsent, da qual tomou o nome Mindszenty, desde menino trabalhou com o pai. Militou depois no Movimento da Juventude Católica, onde ouviu o chamado divino ao sacerdócio. Foi ordenado em 12 de junho de 1915, há exatos 110 anos.

Naquela época, escreveu o livro A Mãe, em tudo oposto à imoralidade crescente contra a qual Nossa Senhora em Fátima veio alertar o mundo em 1917. Conforme ele escreveu, é preferível a mulher ficar no lar, “ponto culminante da dignidade, ela o atinge como esposa e como mãe, sendo a maternidade a mais bela flor que pode oferecer um coração de mulher. Neste sentido, é rainha e sacerdotisa do grande mistério da vida, e essa dignidade leva à veneração. E o que haverá de mais sagrado, para além do amor transido de veneração?”.2

Após a I Guerra Mundial, ao desabar o Império Austro-Húngaro, o jovem sacerdote Mindszenty discerniu logo que o mundo rumava para a catástrofe do socialismo e alertou os católicos. Em 1919 ele foi preso durante a revolução comunista de Bela Kun, pelo “crime” de condenar o confisco das escolas católicas e instruir os padres a pregar contra a reforma agrária.3 Foi sua “primeira prisão”.

Na capital, Budapeste, reinava o terror: “os subterrâneos do Palácio do Parlamento haviam sido transformados em lugares de execução. Prisioneiros eram trazidos de outras cidades para serem assassinados ali”. Mas logo forças de direita estabeleceram o almirante Miklós Horthy como Regente, pois jurava devolver a coroa de Santo Estevão ao rei Carlos assim que este voltasse.

O rei voltou duas vezes desarmado, mas rodeado de colossal apoio popular. Porém, em ambas as ocasiões, Horthy se recusou a ceder o poder. Na primeira vez, o Pe. Mindszenty entre a multidão reunida ante o palácio, refletiu: “Se eu tivesse um pouco de poder, o rei não nos deixaria como um cão espancado, mas o levaria triunfante para o lugar que lhe pertence: o palácio real”.

Em 1940 ele publicou o opúsculo O comunismo verde, definindo o movimento nazista como diabólico e tão ruim como o comunismo. O Papa Pio XII tornou-o bispo de Veszpremem 1944. Em plena II Guerra Mundial, Dom Mindszenty fustigava os fascistas húngaros pró-alemães, que o puniram com seu “segundo encarceramento”. Foi preso num local para eclesiásticos que seriam executados. Quatro meses depois, os soviéticos se tornaram os guardiões. Da cela onde se achava, ouviam-se os gritos das mulheres violadas por soldados russos bêbados, que fuzilavam e saqueavam enquanto os comunistas húngaros proclamavam a reforma agrária e intimavam Dom Mindszenty a dar as boas-vindas aos “libertadores” soviéticos — o que ele recusou.

Afinal foi solto e voltou à sua diocese, onde viu as atrocidades cometidas pela soldadesca da foice e do martelo: sacerdotes massacrados, sevícias e crimes contra os fiéis, a catedral profanada, os paramentos litúrgicos despedaçados por mulheres marxistas, o Núncio Apostólico expulso.

Dom Mindszenty empreendeu a reconstrução de igrejas, escolas, mosteiros, centros culturais e reitorias, e alertou contra a diabólica infiltração marxista na Igreja porque “brigadas comunistas participavam da reconstrução de igrejas para depois publicar o fato na imprensa como sinal de boa disposição para com a religião”.

O comunista Béla Kun comemorando a tomada de Košice (Kassa), em 7 de junho de 1919. O jovem sacerdote Mindszenty foi preso nessa época pela primeira vez.

Recebe a túnica de cor sangue, símbolo do martírio

Enquanto liderava o renascer do catolicismo, o Papa Pio XII nomeou-o Arcebispo de Esztergom e Primaz da Hungria. A posse se efetivou numa catedral devastada, mas Mindszenty defendia que “Esztergom é a expressão da concepção cristã medieval do Estado, na qual o sacerdotium e o imperium, o papa e o imperador, se davam as mãos. Na Hungria, esse princípio encontrou sua personificação no rei e no arcebispo de Esztergom”.4 Como Primaz, recaía sobre ele a regência do reino da Hungria vacante. Ele sempre permaneceu “no mais fundo de sua alma um monarquista até o fim de sua vida”.5

Conseguiu ser levado por veículos militares americanos a Roma para receber a púrpura cardinalícia. Ao concedê-la, o Papa lhe disse: “Entre estes 32

[cardeais nomeados na cerimônia]

, tu serás o primeiro a sofrer o martírio simbolizado pela cor vermelha da púrpura”.6

Dom Mindszenty como Arcebispo de Esztergom e Primaz da Hungria

Luta encarniçada até nova prisão

Dom Mindszenty abriu o Ano Mariano 1947-1948 exortando os 60.000 peregrinos a jurarem lealdade à Grande Senhora da Hungria, a Virgem Maria. Em setembro, já tinham sido distribuídas 1.112.000 comunhões e o Ano Mariano se encerrou com a participação de 4.600.000 fiéis. O indômito Purpurado increpou os padres progressistas por colaborarem com o regime comunista em troca de ‘trinta moedas’. “Alto-falantes proclamavam nas ruas, praças e empresas coisas como: ‘A atitude hostil e antidemocrática do Primaz é a causa da divisão e da infelicidade do nosso povo; ele exige a devolução de bens confiscados, recusa-se a reconhecer a república, organiza a contra-revolução e impede um acordo entre a Igreja e o Estado’”.7 A imprensa desatou então um ataque geral, alegando que os bispos exerciam uma pressão terrorista.

A submissão dos bispos cismáticos ao Soviete Supremo na URSS era o modelo desse “acordo” que devia começar com os bispos reconhecendo a República comunista. O Primaz respondeu que tinha “pouca fé na democratização do bolchevismo”8 e o “diálogo” ficou impossível. Para o PC húngaro, o Cardeal Mindszenty encarnava a “reação clerical” assinando como Príncipe-Primado quando os títulos de realeza ou nobreza estavam proibidos, e o acusava de ser “o maior latifundiário” que “sustentou a monarquia e, depois, a ditadura fascistoide do almirante Horthy”.9 Nas ruas, operários comunistas bradavam: “Esmaguemos o Mindszentismo!” e irrompiam nas fábricas com abaixo-assinados para levar o Primaz a um tribunal popular.

Comícios de padres e paróquias exigiam sua saída porque, cheio de “atitudes aristocráticas”, excomungava os deputados católicos que votaram o confisco das escolas. O comunismo nacionalizou 3.148 escolas da Igreja, mas suscitou a indignação anticomunista geral. O Cardeal Mindszenty ficou como uma coluna solitária no deserto, até que, em dezembro de 1948, o previsível aconteceu: foi encarcerado por traição e conspiração.

Cardeal József Mindszenty no banco dos acusados, fevereiro de 1949 [também foto abaixo]

Como Cristo nas mãos de seus algozes

Ele foi levado portando uma imagem de Jesus coroado de espinhos com a inscrição devictus vincit — “derrotado, Ele venceu”. Mas deixou escrito que, se alegassem uma ‘confissão’, seria uma ‘falsificação’ ou fruto de torturas. Na sede da polícia secreta, entre risadas de homens e mulheres, tiraram-lhe a batina, a roupa íntima e vestiram-no de palhaço. O major trovejava: “Raça de cachorro, estávamos esperando por esse momento há algum tempo, mas ele finalmente chegou”.

Nos interrogatórios ele recusava os dizeres inventados e, entre risadas sádicas, era despido e deitado por terra para ser surrado em todo o corpo até desmaiar. A tortura se repetia dias a fio. Ele não comia nem dormia, pois sabia que os torturadores misturavam drogas no alimento e os guardas não o deixavam dormir. Quando tentava recitar o terço com os dedos, cobriam-no com os termos mais obscenos. Após 39 dias, os algozes não arrancaram dele o que queriam. Mas suas energias se esgotavam e os fármacos lhe causavam uma angústia e uma depressão desproporcionada. Apresentavam-lhe papéis que seriam mostrados como “confissões” ante o Tribunal. O coronel Decsi, chefe das torturas, estava obsedado pelo “acordo entre a Igreja e o Estado”, dizendo que “vários bispos” se haviam posicionado contra ele. Nos dias prévios ao julgamento foi-lhe imposto o uso do hábito de Cardeal, para exibi-lo ante os jornalistas estrangeiros, mas pouco antes do julgamento lhe deram uma roupa civil para não comparecer com vestes eclesiásticas.

“Começou o circo”

Com o corpo e a mente atingidos, o Cardeal padeceu um “julgamento de fachada”, acusado de mais de 40 “crimes” inventados. Ele sussurrou em latim Circus incipit (“Começou o circo”). A polícia, o promotor, o juiz e o advogado de defesa colaboravam naquela encenação de inescrupulosa hipocrisia. O processo sumário de seis dias, em fevereiro de 1949, foi presidido por Vilmos Olti [foto ao lado], que tinha fama de “juiz da morte em processos ilegais”. Havia militado no Partido Nazista húngaro, mas trocou de bando e aderiu ao Partido Comunista. Ficou célebre por condenações com “acusações forjadas e sentenças de morte em processos ilegais, mas acabou proibido de julgar ‘devido à sua má reputação’”.10

Olti fixou que o Cardeal seria julgado pela “questão do rumo que o progresso deve tomar. Através da chamada democracia burguesa ou através da democracia popular rumo ao socialismo”.11 Esse último era o rótulo para a implantação gradual do comunismo. Assim sendo, o Cardeal Mindszenty estava condenado a priori.

Propriedade privada e Mandamentos da Lei de Deus

O juiz Vilmos Olti prejulgava que o pior “crime” fora contra a Reforma Agrária confiscatória. Em carta pastoral de maio de 1945, o Cardeal Mindszenty sublinhara que a Reforma Agrária destruiria a ordem social hierárquica magiar e ameaçava a subsistência das instituições eclesiásticas ao privá-las de seu sustento. O regime marxista propôs uma mitigação da aplicação dessa reforma e um salário igual ao do Primeiro-Ministro, que ele recusou como uma paga do Sinédrio.

Sua resistência também foi hercúlea quando atacaram a família. Em seu livro A Mãe, ensinara que “Santo Agostinho diz que o casamento procede de Deus; por conseguinte, o divórcio deve proceder do demônio. E, na verdade, assim é! […] os tribunais que deveriam ser os defensores do direito são, na verdade, os seus verdugos”.12

A educação marxista “secular” e “moderna” destruía as tradições húngaras e o Cardeal Mindszenty se lhe opôs com fortaleza granítica: “As escolas são como cidades fortificadas em que se trava por todos os lados um violento combate para conquistar as almas das crianças. […] São Tomás diz com toda a razão que ‘se a escola não for uma casa de Deus, acaba virando um covil de ladrões’”.13

Aos jornalistas ocidentais que arguiam que em países “liberais” ou “burgueses” como a Inglaterra, Austrália e os EUA, a educação primária estava nas mãos do Estado, ele retorquia: “O berço da escola moderna é a Igreja. A educação chegou ao nosso país de braço dado com o Cristianismo e é por isso que a Igreja é a mãe e a escola dos nossos filhos. […] Na verdade, é o segundo berço da família, do povo e de toda a nação”.14

O governo pró-soviético de Budapeste era claro: devolveria as escolas secundárias, universidades e seminários se a Igreja concordasse com: 1) a República socialista; 2) a reforma agrária; 3) a nacionalização da indústria. Em troca, a Igreja deveria silenciar os preceitos do Decálogo que fundamentam a propriedade privada (7.º e 10º Mandamentos) e apresentaria aos fiéis uma imagem desfigurada do próprio Deus, prejudicando gravemente sua santificação. A Igreja não podia aceitar esse acordo como um “mal menor” para subsistir sob o comunismo, sem trair sua vocação divina.

Cínica condenação do Cardeal

A sentença condenatória do Tribunal Popular de Budapeste incluiu penas cumulativas à pena de morte (depois trocada por prisão perpétua), perda do cargo, dez anos de suspensão dos direitos políticos e confisco de todos os seus bens. O juiz justificou as penas pelos esforços do Cardeal Mindszenty na restauração da monarquia: “Habsburgos significa feudalismo, a restituição das propriedades feudais e o imenso poder político e econômico da aristocracia e dos chefes da Igreja Católica. O memorando […] se opondo à reforma agrária, encontrado entre os documentos secretos de Jozsef Mindszenty, não deixa dúvidas […].

“Mindszenty e seus cúmplices […] pediram intervenção estrangeira […] perfeitamente de acordo com as intenções dos EUA […]. Que pretendem a subjugação do mundo, extirpando todas as forças do progresso”,15 acrescentou. De fato, numa entrevista ao Daily Mail antes de sua prisão, auspiciou uma ‘invasão imediata’ da Hungria por tropas britânicas e americanas. O entrevistador treplicou que isso levaria a uma guerra nuclear, ao que ele respondeu: “Ainda é melhor que o bolchevismo”.16

Grandeza moral na suprema injustiça

O Cardeal apareceu no banco dos réus com os olhos arregalados e muito fixos [foto ao lado], desconfiando daqueles que o rodeavam, exprimindo a certeza de ingressar numa via sacra com a deliberação indomável de não fazer qualquer composição com o adversário. Olhando para essa fisionomia, somos levados a lembrar dos sofrimentos de Nosso Senhor nos dias que antecederam a sua crucifixão.

Três dias depois da condenação, o Papa Pio XII excomungou todas as pessoas nela envolvidas. E falando à multidão reunida na Praça de São Pedro para protestar contra o “julgamento-show”, perguntou aos fiéis: “Quereis uma Igreja que fica silenciosa quando deveria falar? Que abafa a Lei de Deus para acomodá-la à vontade do homem quando deveria proclamá-la aos brados? Uma Igreja que não condena a repressão das consciências e não permanece de viseira erguida pela justa liberdade do povo? Uma Igreja que se fecha em si própria dentro das quatro paredes de seu templo e fica numa auto-bajulação indecorosa, esquecendo a missão divina recebida de Cristo: ‘Ide às encruzilhadas e convidai todos quantos achardes’ (Mt 22, 9)? Reconheceis nisso a Igreja que encarna o rosto de vossa Mãe? Seríeis capazes de imaginar um Sucessor de São Pedro se submetendo a tais exigências?”17

No Rio de Janeiro, uma imensa manifestação de solidariedade percorreu a avenida Rio Branco, assistida pelo presidente Gaspar Dutra. O Cardeal Francis Spellman, de Nova York, exclamou: “Se é traição negar lealdade ao governo comunista ateu, então graças a Deus o Cardeal Mindszenty confessou a traição”. O presidente dos EUA, Harry Truman, qualificou a condenação de “infame”. As queixas se multiplicaram no mundo livre, mas não saíram das palavras. O Cardeal Mindszenty tinha ficado tão sozinho como Jesus diante de Pilatos e passou a ser transferido de presídio em presídio durante oito anos.

Cardeal martirizado na prisão

Ungarn Aufstand, Ungarnaufstand, Ungarn-Aufstand, Úri utca, Sitz des ungarischen Erzbistums: Rede von Kardinal Mindszenty

Após o julgamento-teatro, o Cardeal Mindszenty foi levado a um hospital porque seu corpo enfraquecido pelas torturas não teria suportado. Lá eram executadas frequentemente sentenças de morte e os coveiros transportavam os cadáveres no momento dos passeios para que os presos os vissem. Foi posto num ambiente incrivelmente úmido, onde os presos pereciam em seis meses. Um general lhe confidenciou entre deboches e escárnios: “O povo está no comando. O Papa logo acabará do mesmo jeito”.18 Em sentido contrário, o Papa Pio XII, na “Carta Apostólica aos povos perseguidos da Europa”, de junho de 1956, escreveu que o exemplo do Cardeal húngaro “causava admiração aos Anjos de Deus”.

O regime não queria que sua morte prejudicasse a aproximação com a Igreja e o Ocidente. Após anos, foi internado no castelo de Almassy, enquanto os ‘padres pacifistas’ devastavam a Igreja. Até um sacerdote foi pedir-lhe para aceitar o “acordo” como queria o Kremlin. Ele respondeu que a proposta era péssima e inaceitável.

Em outubro de 1956, durante um heroico levante contra a dominação comunista, o Cardeal Mindszenty foi libertado e levado para Budapeste

Entre o levantamento e a traição

Em outubro de 1956, durante um heroico levante contra a dominação comunista, tentaram levar o Cardeal a Budapeste, mas ele se negou, temendo ser assassinado. Por fim, um anticomunista entrou, dizendo: “O senhor está livre. Tenho à sua disposição tudo o que precisar”. Havia muitos anos que não chorava, mas naquele momento fê-lo abundantemente. A prisão foi inundada pelo povo que desejava tocá-lo, beijar sua batina e receber sua bênção. Viajou até Budapeste entre tanques soviéticos calcinados e duas alas de pessoas em festa. Os sinos reboavam, choviam flores e ele abençoou uma multidão ajoelhada diante do palácio arquiepiscopal.

Mas lá verificou que vigorava o “acordo” e que ‘padres pacifistas’ ocupavam as sedes episcopais, dividindo a Igreja, recebendo honrarias por ‘seus esforços para construir o socialismo’ e por viajar ao exterior para elogiar o acordo. Seu primeiro ato na liberdade foi expulsar esses padres colaboracionistas.

O exército comunista retomou Budapeste e assanhou-se em represálias. Nem a ONU, nem as potências do mundo livre socorreram a infeliz nação. O Primaz da Hungria refugiou-se no prédio diplomático mais próximo, que era o americano, sendo acolhido pelo embaixador Edward Thompson Wailes [foto acima], que o tratou como “símbolo de liberdade”. Um capelão militar americano lhe deu paramentos e livros para a celebração da Missa, e assim ele pôde celebrar o Santo Sacrifício enquanto um silêncio sepulcral descia sobre o país.

Recinto diplomático: uma prisão disfarçada

No recinto diplomático o Cardeal nunca poderia trocar uma palavra com ninguém. Quando o vice-presidente Nixon esteve na Hungria não foi visitá-lo, e durante a presidência Kennedy apenas duas irmãs deste assistiram à Santa Missa. Missionários e rabinos, padres e turistas ficavam muito surpresos quando lhes era negada a permissão de ver o ilustre ‘prisioneiro’.

Assim, passou durante 15 anos num asilo-carcerário com algumas comodidades. Mas sua mera existência atrapalhava a convergência do Kremlin com o Ocidente e com uma Santa Sé que mudava com o Concílio Vaticano II. O Cardeal Koenig, Arcebispo de Viena, por encargo dos Papas João XXIII e Paulo VI, foi visitá-lo várias vezes, oferecendo-lhe um cargo na Cúria romana, que ele sempre recusou porque significava abandonar seus fiéis húngaros e sua luta contra o regime comunista.

Aproximação com o comunismo dificultada

“Coexistência” e “distensão” tornavam-se “palavras mágicas” nos ambientes eclesiásticos e na política internacional, mas a aproximação da Santa Sé com o Kremlin não podia progredir com o Cardeal Mindszenty prisioneiro. Cumpria afastá-lo da Hungria. Os dois Papas acima mencionados encomendaram essa tarefa a um hábil negociador, Mons. Agostino Casaroli, que nas suas Memórias19 descreveu como a diplomacia vaticana executou a vontade de Moscou.

Mons. Casaroli viajou várias vezes a Budapeste para tentar seduzir o Cardeal, percebendo já no primeiro encontro a censura no seu olhar, que parecia “uma lâmina de aço, inflexível, pronta ao choque sem exclusão de golpes com uma realidade igualmente determinada a não se deixar dobrar”. A conclusão lógica só podia ser um irremovível Delenda Carthago! Não havia outro caminho senão a eliminação do regime comunista.20 O Cardeal chegou a “ameaçar com a ideia de se entregar às autoridades húngaras, para retornar ao cárcere”, fato que teria desfeito a falsa distensão.

A vítima encerrada na embaixada americana prejudicava um dos mais caros objetivos do Concílio Vaticano II. Nele, Paulo VI bloqueou duas petições — a primeira subscrita por 213 Padres Conciliares de 54 países e a segunda por 450 Padres conciliares — rogando ao Concílio que condenasse o marxismo, o socialismo e o comunismo, profligando os erros e a mentalidade que preparam o espírito dos católicos para aceitar aqueles sistemas falsos.21

Em 2018, o Cardeal Joseph Zen, resistente ao comunismo na China, narrou que o Papa Francisco lhe confidenciou que não queria “que criassem outro caso Mindszenty!”. O Cardeal comentou: “Pode-se imaginar um acordo entre São José e o Rei Herodes?”. E perguntado pela imprensa se “acreditava que o Vaticano estava vendendo a Igreja Católica na China”, respondeu: “Sim, absolutamente”. O Cardeal Mindszenty, se vivo, não teria usado palavras diferentes.22

Em Roma, Paulo VI recebeu o Cardeal Mindszenty com gestos de apreço e elogios. Porém, no dia de sua partida de Budapeste, o jornal L’Osservatore Romano festejava que “se tivesse eliminado um obstáculo que dificultava as boas relações entre Igreja e Estado”. Isso posto, o Cardeal não quis ficar no Vaticano, mas radicar-se em Viena.

Silêncio enigmático do Concílio Vaticano II

No pós-guerra, as ideias comunistas não conquistavam as multidões —sobretudo as operárias e largos setores da juventude —, embora a mídia, as elites políticas, o jet-set cultural e vastos ambientes eclesiásticos as tratassem como destinadas à vitória. Mas elas tinham “pés de barro”, como se pode patentear na vergonhosa guerra de invasão da Ucrânia. O comunismo precisava de um fogo novo e o procurava na impostação do Vaticano II.

“O êxito dos êxitos alcançado pelo comunismo pós-staliniano sorridente — escreveu o Prof. Plinio Corrêa de Oliveira — foi o silêncio enigmático, desconcertante, espantoso e apocalipticamente trágico do Concílio Vaticano II a respeito do comunismo. […] A obra desse Concílio não pode estar inscrita, enquanto efetivamente pastoral, nem na História, nem no Livro da Vida. É penoso dizê-lo. Mas a evidência dos fatos aponta, neste sentido, o Concílio Vaticano II como uma das maiores calamidades, se não a maior, da História da Igreja”.23

O Cardeal partiu para o “exílio permanente”

Em junho de 1971, agindo em nome do Papa Paulo VI, Mons. József Zagon lhe impôs deixar a Hungria, com o Vaticano garantindo que seu “título de arcebispo e primaz não seria afetado”. Mas lhe exigia que “não fizesse nenhuma declaração que ‘pudesse perturbar as relações entre a Sé Apostólica e o governo húngaro’”. O Cardeal “seria obrigado a manter suas Memórias em segredo; deixando seus manuscritos à Santa Sé em seu testamento”.24 Concomitantemente, o presidente dos EUA, Richard Nixon, fê-lo saber que “seria um hóspede indesejado na embaixada”. Então, o Cardeal deixou a Hungria em 28 de setembro de 1971.

Em Roma, Paulo VI o recebeu com gestos de apreço e elogios. Porém, no dia de sua partida de Budapeste, o jornal L’Osservatore Romano festejava que “se tivesse eliminado um obstáculo que dificultava as boas relações entre Igreja e Estado”.25 Isso posto, o Cardeal não quis ficar no Vaticano, mas radicar-se em Viena. Paulo VI despediu-o, dizendo: “O senhor é e continua sendo Arcebispo de Esztergom e Primaz da Hungria. […] se tiver dificuldades, recorra sempre a nós com confiança”.26 Porém, em 18 de dezembro de 1973, o mesmo pontífice declarou vacante a arquidiocese primacial húngara, recusando todo pedido de reconsideração. Numa recusa motivada, mas categórica, o Cardeal declarou que não renunciara e que a administração eclesiástica instalada era uma montagem comunista que não lhe permitia abdicar. Ele resumiu este drama derradeiro nas palavras finais de suas Memórias: “Então parti ao exílio permanente”.27

Nas páginas douradas da História

No Brasil, em artigo para a Folha de S. Paulo, o Prof. Plinio Corrêa de Oliveira escreveu: “O Cardeal Mindszenty se tem erguido como o grande inconformado, o criador do grande caso internacional, de uma recusa inquebrantável, que salva a honra da Igreja e do gênero humano. O seu exemplo mostrou aos católicos que não lhes é lícito acompanhar as multidões que vão dobrando o joelho ante Belial”.28

Com a imposição do Sumo Pontífice, prossegue, “o sangue de alma do herói de Esztergom corria junto com e dos que pela terra inteira sofrem em uníssono com ele. Sangue a que foi dado, desde Abel até o fim do mundo, o poder de subir ao Céu e de clamar diante de Deus”.29 Do começo ao fim, a conduta do Vigário de Cristo foi a que desejava o imperialismo comunista, isto é, o anticristo”, concluiu.30

À grande vítima se aplicam as palavras do Espírito Santo: “És tu a glória da Igreja, és tu a alegria dos fiéis, és tu a honra dos que continuam na luta sacrossanta”.31 O acordo, feito às ocultas do Primaz, tinha violado as mais graves promessas vaticanas, e o jornal The Sunday Telegraph, de Londres, publicou suas Memórias sob a manchete: “Crucificado pelo Kremlin e traído pelo Vaticano”.

Na dor, na glória, na alegria e na honra

De Viena, o Purpurado visou preparar a ressurreição de seu povo, “pastoreando centenas de milhares de húngaros no exí­lio; e advertindo o público mundial sobre os perigos do bolchevismo”. Solicitou ao Vaticano a devolução da faculdade de indicar padres para as comunidades húngaras desamparadas no estrangeiro, mas essa lhe foi negada, para não “incomodar o regime de Budapeste”, comentou o Cardeal.“As chaves de Pedro funcionando segundo os desejos de ateus perseguidores implacáveis da Religião: o que é isto senão uma bomba, provavelmente a maior bomba na História da Igreja, de Pentecostes até hoje?”— comentou o Prof. Plinio.32

Os novos bispos magiares protestavam ante a Santa Sé pelas atividades anticomunistas do Cardeal Mindszenty. A Nunciatura Apostólica em Viena lhes informou que a Santa Sé garantira ao marxismo húngaro que o Purpurado em nada contrariaria as conveniências de Budapeste. A não sabendas do Purpurado, a Nunciatura de Lisboa cortou na tipografia a parte do discurso que o Cardeal iria ler em Fátima com críticas à política de sorrisos comunistas.

Falece um cruzado traído

Numa de suas visitas apostólicas às comunidades húngaras no exílio, em Caracas, a TFP venezuelana lhe prestou grandes homenagens. Na despedida no aeroporto, o Cardeal, apontando uma flâmula vermelha com o leão rompante, símbolo da TFP, disse: “Meu coração bate no mesmo diapasão que o coração deles”, e se despediu dizendo: “Até São Paulo” — onde pretendia visitar a sede da TFP brasileira.

Mas em Viena, no dia 6 de maio de 1975, o Cardeal faleceu inesperadamente, durante uma pequena cirurgia. A Arquidiocese de Viena falou de “parada cardíaca”, enquanto um porta-voz do Papa se limitou a expressar “angústia e pesar”. The New York Times33 etiquetou de “traição” as manobras do Papa Paulo VI acima descritas.

O Cardeal Mindszenty terminou seu bom combate neste vale de lágrimas com as palavras que ele deixou no parágrafo final de suas Memórias: “Não há mais nada a dizer. Encontrei o exílio completo e absoluto esperando para me cumprimentar no fim da estrada”.34

Reabilitação e processo de beatificação

Ele foi enterrado no santuário nacional austríaco de Mariazell. Em maio de 1991, seus restos mortais foram transferidos para a Catedral de Esztergom. O presidente e ministros austríacos, altos dignitários da Igreja católica austríaca e húngara, a grande nobreza, representada pelo filho do último rei da Hungria, estiveram presentes. Milhares de fiéis também foram homenagear o “cardeal mártir” que em seu testamento expressou o desejo de só ser repatriado a Esztergom “quando o ateísmo russo tivesse sido destronado do país de Maria e de Santo Estêvão”.35 Até o último hausto ele imitou o Divino Mestre que, nas palavras do profeta Simeão, veio para ser pedra de escândalo e a fim de que fossem reveladas as cogitações de muitas mentes para a salvação dos bons e a perdição dos maus.36

O glorioso Cardeal recebeu uma plena reabilitação legal, moral e política inscrita em lei aprovada pelo Parlamento de Budapeste e corroborada por acórdão da Suprema Corte magiar. Em 15 de junho de 1993, foi aberto seu processo de beatificação.

Glória da Igreja e da Hungria

O Cardeal Mindszenty, embora filho de pais modestos, atingiu em sua longa e atribulada vida a grandeza de um verdadeiro Príncipe da Igreja. E a projetou ao mundo como um exemplo de santidade plena, portanto contra-revolucionária, para os séculos vindouros.

Sua figura correspondia à do que deve ser um Cardeal: sério, compenetrado de sua augusta missão. Nas suas fotografias, documentos e atitudes, sempre encontramos segurança, dignidade, poder de mando e plenitude de virtudes morais. Sua fisionomia profundamente séria deixou gravada para a posteridade a compenetração da vocação que Deus lhe deu: sucessor dos Apóstolos para toda a Hungria, da qual foi o Primaz num século de apostasia. Seu holocausto aceito irrigará por séculos o esplendor do vindouro Reino de Maria.

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Notas:

  1.  Cfr. Insegnamentidi Paolo VI, Tipografia Poliglotta Vaticana, vol. X, pp. 707-709.
  2.  Cardeal Joszef Mindszenty, “Memórias”, tradução italiana do original alemão no site http://www.hungary1956.com, p. 16.
  3. Mihály Karolyi, “Memórias”, p. 339 apud M-L Theory, A Marxist-Leninist blog; “History of the Hungarian People’s Republic (PART 7: The Mindszenty Case (1949) – Church vs the state”, 27-9-22; https://mltheory.wordpress.com/2022/09/27/history-of-the-hungarian-peoples-republic-part-7-the-mindszenty-case-1949-church-vs-state/
  4. Cardeal Joszef Mindszenty, “Memórias”, op. cit. pp. 50-52.
  5.  Hungarian Studies Review, Vol. XL, No. 2. Fall 2013. p. 125, Apud Wikipedia, verbete “Joszéf Mindszenty”, https://en.wikipedia.org/wiki/J%C3%B3zsef_Mindszenty, nota 9 e https://real.mtak.hu/7777/1/real_HSR-fall%202013%20issue-PDF-A.pdf.
  6. Sister M. Pascalina Lehnert (2014), His Humble Servant: Sister M. Pascalina Lehnert’s Memoirs of Her Years of Service to Eugenio Pacelli, Pope Pius XII, St. Augustine’s Press. p. 150. Apud Wikipedia, verbete “Joszéf Mindszenty”, https://en.wikipedia.org/wiki/J%C3%B3zsef_Mindszenty, nota 10.
  7.  Cardeal Joszef Mindszenty, “Memórias”, op.cit. p. 151.
  8.  Id. ibid. p. 157.
  9.  Wikipedia, verbete “Joszéf Mindszenty”, https://en.wikipedia.org/wiki/J%C3%B3zsef_Mindszenty.
  10.  Cfr. Wikipedia, verbete “Olti Vilmos”, https://hu.wikipedia.org/wiki/Olti_Vilmos.
  11. “The Trial of Jozsef Mindszenty”, Hungarian State Publishing House, Budapest, 1949, p. 33. https://www.redstarpublishers.org/mindszenty.pdf.
  12.  Cardeal Joszef Mindszenty, “Memórias”, op.cit.
  13.  Cardeal Joszef Mindszenty, “Memórias”, op.cit pp. 192-193.
  14.  Cardeal Joszef Mindszenty, “Memórias”, op.cit.
  15.  “The Trial of Jozsef Mindszenty”, op.cit., pp. 105-107. https://www.redstarpublishers.org/mindszenty.pdf.
  16.  Pünkösti Árpád, apud M-L Theory, A Marxist-Leninist blog; “History of the Hungarian People’s Republic…” op.cit
  17. Sister M. Pascalina Lehnert (2014), op.cit. 150.
  18.  Cardeal Joszef Mindszenty, “Memórias”, op.cit. p. 247.
  19.  Cardeal Agostino Casaroli, “Il martirio della pazienza – La Santa Sede e i paesicomunisti (1963-1989)”, Einaudi, Torino, col. Glistruzzi nº 520, 2000, 335 pp.
  20.  Id. ibid. p. 52-55.
  21.  Cfr. “Desfazendo as manobras astuciosas de Moscou duzentos Padres Conciliares pedem nova condenação do comunismo e do socialismo”, “Catolicismo”, janeiro de 1964, n° 157, pp. 4 e 5; e https://www.pliniocorreadeoliveira.info/MNF_631203_peticao_200_bispos_concilio.htm.
  22.  Luis Dufaur, “O drama dos católicos fiéis: ‘O Vaticano está vendendo a Igreja Católica na China’”, Catolicismo nº 808, março de 2018. https://catolicismo.com.br/Acervo/Num/0808/P40-41.html
  23.  Plinio Corrêa de Oliveira, “Revolução e Contra-Revolução”, 4ª ed., Artpress – São Paulo – 1998.
  24.  Cardeal Joszef Mindszenty, “Memórias”, op.cit. pp. 343-345.
  25.  Id. ibid. pp. 349-351.
  26.  Id. ibid. p. 351.
  27.  Id. ibid. p. 361.
  28.  Plinio Corrêa de Oliveira, “Ao grande criador do caso imenso”, “Folha de S. Paulo”, 31-3-1974.
  29.  Id. Ibid.
  30.  Plinio Corrêa de Oliveira, “Conforme quer Budapeste”, “Folha de S. Paulo”, 20-10-1974.
  31.  Cfr. Id. Ibid.
  32.  Plinio Corrêa de Oliveira, “Conforme quer Budapeste”, “Folha de S. Paulo”, 20-10-1974.
  33.  “The New York Times”, 07-05-1975, https://www.nytimes.com/1975/05/07/archives/cardinal-mindszenty-dies-as-an-exile-in-vienna-at-83-cardinal.html.
  34. Cardeal Joszef Mindszenty, “Memórias”, op.cit.
  35.  “Le Monde”, 05/06-05-1991.
  36.  São Lucas 2,34.