
Plinio Maria Solimeo
Poucos conhecem todos os procedimentos com os quais a Santa Igreja declarava que uma pessoa chegara à santidade e poderia ser venerada publicamente em todo o universo católico.
Tratando-se de algo muito sério, antigamente exigia um processo muito acurado, lento, detalhado, levado a cabotão cuidadosamente, que durava muitos anos, e algumas vezes até séculos. São Roberto Belarmino, por exemplo, faleceu em 1621 e só foi canonizado em 1930.
Hoje em dia, como veremos, todo esse lento processo foi muito simplificado.
Para dar ao leitor uma ideia concreta dos meandros e vais-e-vens que faziam com que os antigos processos de canonização demorassem muito, exemplificamos com o de Santa Francisca Xavier Cabrini, fundadora e Superiora Geral das Missionárias do Sagrado Coração de Jesus. Falecida no dia 22 de dezembro de 1927, seu processo começou em 1928, mas ela só será declarada santa em 1946.

Um fator que muito facilitou seu processo foi o fato de sua substituta no cargo de Superiora, Madre Antonieta Della Casa, tendo em vista a fama de santidade de que Madre Cabrini já gozava, encarregara uma Irmã que tinha sido sua secretária e companheira de seus empreendimentos por muitos anos, que escrevesse sua biografia. Essa Vida fornece detalhadamente dados abundantíssimos e seguros da santidade da santa, e serviu de base para que se iniciassem os trâmites visando seu processo de beatificação. É com base nesse trabalho que relatamos o que segue.
Serva de Deus
O primeiro passo para a beatificação de um confessor ou de uma virgem era a escolha de um postulador-geral da Causa, em Roma. Este, por sua vez, nomeava um vice-postulador no local do falecimento da candidata, encarregado de promover, no processo diocesano, as pesquisas judiciais necessárias.
No caso de Madre Cabrini foram abertos dois processos: um no dia 11 de agosto de 1928, em Chicago, 11 anos após sua morte, e outro em janeiro de 1929, em Condogno, na diocese de Lodi, onde ficava a Casa-Mãe das Missionárias. Em ambos foram formados Tribunais Eclesiásticos que prepararam, cada um, três processos: o primeiro sobre a fama de santidade da Madre, suas virtudes e milagres em geral, para o qual foram ouvidas testemunhas, e o segundo demonstrando que não havia culto público prestado a ela, apesar de morrer em odor de santidade, o que, caso positivo, impugnaria o processo; e o terceiro sobre seus escritos.
Esses processos, concluídos quatro meses depois, foram enviados para a Congregação dos Ritos em Roma.
Nesta, os dois Teólogos e Censores, a quem caberia analisar os escritos de Madre Cabrini, deram seu voto favorável ao andamento da Causa. O processo foi então para a Congregação Ordinária dos Ritos, em fevereiro de 1930. Como todos seus membros lhe foram favoráveis, emitiu-se o Decreto sobre a Aprovação dos escritos, por força do qual se podia proceder aos outros atos.
Seguiu-se então a preparação da Positio, ou “Posição sobre as virtudes”, documento ou conjunto de documentos utilizados no processo pelo qual uma pessoa poderia ser declarada “Venerável”, isto é, segundo dos quatros passos no caminho até a declaração de santidade (Venerável, Servo de Deus, Beato, Santo). Com 750 páginas, essa positio incluía os documentos relativos à fama de santidade, virtudes e milagres em geral da Serva de Deus, com o depoimento de mais 40 testemunhas dos processos de Lodi e Chicago.
Foi então a vez de se pronunciar sobre a Positio o Promotor da Fé, ou “Advogado do Diabo” — que era o responsável por argumentar contra a canonização do candidato, tentando descobrir quaisquer falhas de caráter ou deturpação nas provas a favor dele, como uma inconsistência nas provas dos supostos milagres etc. Ele apresentou as suas objeções, as quais, entretanto, o Advogado encarregado do estudo da Causa demonstrou que careciam de fundamento. Com tudo isso, a Positio chegou a quase mil páginas.
Ela foi então apresentada aos Cardeais e Prelados da Congregação dos Ritos, que deram seu parecer favorável, publicando no dia 24 de março de 1931 o Decreto sobre a Introdução da Causa, que foi aprovado pelo Papa Pio XI. Quando esta Congregação aceita a causa, a pessoa passa a ser chamada Serva de Deus.
Venerável
Para continuar o processo, foi então preciso confirmar mais uma vez que não tinha havido culto público à Madre Cabrini, o que foi feito interrogando novamente as testemunhas e visitando os locais onde ela viveu, nas dioceses de Chicago e de Lodi. Para esse efeito, a Congregação dos Ritos enviou, em cartas Emissioriais, as instruções e o questionário das interrogações que deveriam ser dirigidas às testemunhas.
Em junho de 1933 foi ultimado e copiado o Processo Apostólico sobre as virtudes heroicas em Lodi; e, em seguida, em Chicago. Logo depois foi concluído também o Processo feito em Roma. No total, as testemunhas foram 60.
Faltava comprovar a validade de todos os Processos Ordinários e Apostólicos. Para isso foi preparada outra Positio compreendendo o sumário dos atos dos Processos, a lista das testemunhas, além de outras informações. Impressa pela Congregação Particular dos Ritos em janeiro de 1936, sua validade foi discutida, resultando no decreto plenamente favorável.
Ao mesmo tempo, disso resultou mais uma Positio sobre as virtudes da Madre, com o sumário dos depoimentos das testemunhas em um volume; e, em outro, a demonstração das virtudes exercidas em grau heroico. As objeções do Advogado do Diabo foram respondidas outra vez pelo Advogado, com as explicações cabíveis.
Dos 15 Consultores da Congregação, quase todos deram o voto afirmativo, mas houve alguns que o deram suspensivos, de maneira que foram impressas umas “novae animadiversiones” às quais se juntou uma nova resposta do Advogado da Causa. Essa nova Positio foi distribuída a oito ou nove Cardeais, bem como aos Consultores. O resultado geral foi favorável, mas segundo o Processo Canônico, as discussões na chamada Congregação Geral deveriam ser feitas em presença do Papa. Este, depois de alguns dias, deu seu voto deliberativo, autorizando tornar público o Decreto.
Finalmente, no dia 21 de dezembro de 1937, diante de Pio XI, presentes o Prefeito da Congregação dos Ritos, o Relator da Causa, o Promotor Geral da Fé, o Postulador e mais um numeroso grupo de Prelados, personalidades, religiosos, foi lido o Decreto pelo qual o Santo Padre declarou “constar do grau heroico das virtudes teologais, Fé, Esperança e Caridade, para com Deus e para com o próximo, e das virtudes cardeais da Prudência, Justiça, Fortaleza e Temperança e virtudes anexas, da Serva de Deus Francisca Xavier Cabrini, que a partir desse momento podia ser invocada privadamente com o título de Venerável”.
Desse modo, foi superada a parte principal e essencial da Causa. Mas isso não era suficiente para elevar Madre Cabrini às honras dos altares. Pois era necessário um “testemunho divino”, dado por milagres que confirmassem a sua santidade.
Beata
Para a beatificação da Venerável Madre Cabrini foram apresentados dois milagres, um ocorrido em 1921 e outro em 1925. As provas jurídicas das duas curas tidas por milagrosas tinham sido anexadas em setembro de 1933 ao Processo Apostólico de Chicago. Sobre essas duas curas testemunharam com juramento oito testemunhas visuais, além dos dois médicos que cuidaram dos casos. Apresentados à Sagrada Congregação dos Ritos, esta nomeou mais quatro médicos, dois para cada milagre que, independentemente uns dos outros, deram seu juízo médico legal, concordando objetiva e plenamente sobre a diagnose, a prognose, e também sobre a perfeição e a instantaneidade da cura e seu caráter milagroso. Foi acrescentado a isso o estudo do Advogado, com informações sobre a origem, natureza e gravidade das doenças, bem como a invocação dirigida à Venerável. Enfim, sobre o caráter “repentino, perfeito, constante e milagroso” das curas operadas.
Mais uma vez, o “advogado do diabo” apresentou suas objeções. A elas respondeu satisfatoriamente o Advogado da Causa. Formou-se assim uma outra Positio, composta da informação, do sumário, dos depoimentos das testemunhas, dos quatro médicos, das dificuldades do Promotor da Fé, e da resposta do Advogado, que foi apresentada à Congregação dos Ritos.
Encaminhada por esta à Congregação Ante-preparatória em 15 de março de 1938, o relator da Causa, Cardeal Verde, os Consultores Prelados e Teólogos fizeram algumas objeções, e o Promotor da Fé apresentou suas “novae animadversiones”. Por isso as duas curas foram novamente submetidas ao juízo de outros dois médicos, chamados periziori, um para cada milagre, e seu juízo foi em tudo concorde com o dos médicos anteriores.
Isso tudo gerou uma “nova positio super miraculis”. Em 14 de julho de 1938 realizou-se no Vaticano a Congregação Preparatória, composta pelos Cardeais e Consultores, para estudá-la. Sendo todos unânimes em admitir os dois milagres, no dia 19, na Congregação Geral diante do Papa, os Cardeais e Consultores deram seu voto favorável a eles. Assim, no dia 31 de julho, foi dada a leitura do Decreto no qual Pio XI declarou aprovados os dois milagres operados por Deus por intercessão da Venerável Francisca Xavier Cabrini.
Entretanto faltava ainda resolver, como exige o processo, se se poderia, tuto certo, proceder à solene Beatificação. A palavra “tuto” aí significa “fora de perigo”, ou seja, que a Santa Igreja pode estar bem certa, antes de elevar um Servo ou uma Serva de Deus à honra dos altares.
Sobre isso, diz Pio XI: “A palavra latina ‘tuto’ significa ‘fora de perigo’, sem perigo, com segurança de qualquer perigo. Em outros termos, tudo isto quer dizer que a Santa Igreja, mãe e mestra da verdade, procede cauta e quer estar bem certa antes de elevar um Servo ou uma Serva de Deus às honras dos altares, que tudo o que foi testemunhado a favor deles seja verdade, que o que é verdade seja bom, que o que é bom o seja no superlativo histórico. … Poder-se-ia concluir que o ‘tuto’ é o corolário de todas as precedentes e minuciosas pesquisas e demonstrações, as quais não parecerão supérfluas nem excessivas, se pensarmos que elas se movem no delicadíssimo campo da santidade”[i].
Tendo a última dúvida sido dissipada, a resposta unânime foi favorável à Beatificação.
De modo que, no dia 6 de agosto, no Palácio Apostólico de Castel Gandolfo, Pio XI pronunciou o Decreto, sentenciando: “Pode-se com segurança proceder à solene Beatificação da Venerável Francisca Xavier Cabrini”.
Esta se deu no dia 13 de dezembro de 1938, numa basílica de São Pedro engalanada, apresentando uma imagem da nova Beata na Glória de Bernini, para grande júbilo das Missionárias do Sagrado Coração de Jesus presentes nos vários continentes.
Santa

Para a canonização só eram necessários mais dois milagres. Entre as muitas curas tidas por milagrosas, operadas pela Beata Cabrini, foram selecionadas duas, acontecidas na diocese de Lodi, as quais obtiveram sua aprovação. Seguiu-se então um processo igual ao descrito por ocasião da Beatificação, que por isso omitimos.
Tendo Pio XI falecido na madrugada de 10 de fevereiro de 1939, coube a seu sucessor, Pio XII, aprovar os dois milagres. Ele o fez no dia 20 de junho de 1943, permitindo proceder-se à solene Canonização da Beata Francisca Xavier Cabrini.
Entretanto, havia mais um requisito antes disso. O Processo Canônico exigia também que, além da aprovação do Santo Padre, para que um Beato pudesse ser inscrito no rol dos Santos, houvesse o consenso de grande parte da Igreja docente. Com este fim, foram feitos na presença do Papa três Consistórios: Secreto, Público e Semi-Público, realizados no dia 13 de junho de 1946.
No fim do último Consistório, o Papa, pela boca do Secretário dos “Brevi Principes”, afirmou que a Beata Francisca Xavier Cabrini era digna de ser inscrita no rol dos Santos, fixando a data para a sua Canonização solene, que ocorreu em 7 de julho de 1946.
Tudo “mais simples”, “mais rápido”, “menos caro e mais produtivo”
Infelizmente, com o aggiornamento e o descalabro que ocorreu na Igreja post-conciliar, tudo isso ficou coisa do passado. Surgiu um novo conceito de santidade, e o processo de beatificação se tornou “mais moderno, mais de acordo com os tempos”.
Foi João Paulo II que, no dia 25 de Janeiro de 1983, pela sua Constituição Apostólica Divinus perfectionis magister, e pela publicação, em 7 de Fevereiro de 1983, das “Normae servandae in inquisitionibus ab episcopis faciendis in causis sanctorum”, promoveu a profunda reforma no procedimento das causas de canonização.
Por elas, entre outras coisas, houve a reestruturação da Congregação para a Causa dos Santos, uma vez que, como diz aquele Papa, “à luz da doutrina sobre a colegialidade proposta pelo Concílio Vaticano II, seria conveniente associar os Bispos à Sé Apostólica no tratamento das Causas dos Santos”, visando um “procedimento mais ágil” no processo. Para isso, foi abolido o “advogado do Diabo”.
Em sua Constituição, João Paulo II afirma: “A Sé Apostólica […] propõe homens e mulheres que sobressaem pelo fulgor da caridade e de outras virtudes evangélicas para que sejam venerados e invocados, declarando-os Santos e Santas em ato solene de canonização, depois de ter realizado as oportunas investigações”.
Quer dizer, trata-se de pessoas que se “sobressaem pelo fulgor da caridade e de outras virtudes evangélicas”, e não mais as que praticaram em grau heroico as virtudes teologais e as cardeais. Também serão “declarados Santos e Santas […] depois de ter realizado as oportunas investigações” Não são mais necessárias as investigações indispensáveis, mas as “oportunas”. Desse modo, pode-se canonizar mesmo não católicos, que tenham sido grande filantrópicos, tenham feito muita caridade e até não católicos…
Deve-se acrescentar que, em 18 de fevereiro de 2008, a Santa Sé tornou pública a instrução Sanctorum Mater, da Congregação para a Causa dos Santos (de 1983), sobre as normas que regulam o início das causas de beatificação juntamente com o Index ac status causarum, que “agilizou” o processo de beatificação.
A reforma do Papa Woytila simplificou assim, drasticamente, os processos de canonização, de maneira que, de 1588, data da criação da Congregação dos Ritos, a 1978, foram realizadas um total de 808 beatificações e 296 canonizações. Somente João Paulo II beatificou 1338 pessoas, isto é, um número maior do que o de todos os anteriores Papas em conjunto, e canonizou 482, mais canonizações do que fizeram todos os Papas desse século. Por sua vez, o Papa Francisco, em seis anos de pontificado, canonizou 892 santos, 813 dos quais são os mártires de Otranto, na Itália.
Essa mudança
de ordem quantitativa tem como consequência uma mudança de ordem qualitativa.
Se as canonizações são agora mais numerosas, é porque a santidade que
testemunha a canonização possui uma significação diferente: a santidade não é
mais coisa rara, extraordinária, mas algo de muito comum. Tenha-se
em vista a canonização de pessoas muito controvertidas, como João XXIII e Paulo
VI, entre outras.
[i] Do discurso de Pio XI depois da leitura do decreto do “tuto” para a beatificação do Vem. Pignatelli e da Vem. Catarina Labouré (L’Osservatore Romano, 15/03/23).