O ENIGMA DA BASTILHA

A Queda da Bastilha, 14 de julho de 1789

O marco da sanguinária, e mesmo diabólica, Revolução Francesa foi a Queda da Bastilha, no dia 14 de julho de 1789, exatamente há 235 anos. Rememorando essa simbólica data, reproduzimos um artigo publicado na revista Catolicismo (edição de julho de 1951) de autoria de um saudoso diretor da revista (+1988) e brilhante advogado e jornalista, o Dr. José Carlos Castilho de Andrade.
 

Como se sabe, a Revolução Francesa marca o fim dos Tempos Modernos e o início da Época Contemporânea. Este acontecimento, que fica situado entre duas eras históricas inteiramente diversas, começou com a capitulação da velha fortaleza real ante o populacho amotinado, que nela via o símbolo da ordem de coisas que queria destruir.

Compreende-se pois que a Bastilha, em torno da qual pairavam lendas tão sinistras e emocionantes, tenha atraído a atenção dos historiadores e a curiosidade do público.

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O 14 de Julho assinala o crepúsculo da verdadeira liberdade. Essa Bastilha Santo Antonio, que depois teve tão triste fama, começou a construir-se em 1370, no reinado de Carlos V, chamado o Sábio. Era então apenas uma fortificação para proteger contra os ataques inimigos a entrada de Paris pela Porta Santo Antonio.

Já no século seguinte recebia esporadicamente prisioneiros, pelo menos os de guerra, o que não impedia os Reis de nela realizar grandes festas e hospedar personagens ilustres de visita à cidade.

Prisão de Estado

Ao Cardeal de Richelieu, pontífice do absolutismo francês, é que se deve a transformação da Bastilha em prisão de Estado. Fernando Bournon definiu muito bem o que era uma prisão de Estado no Ancien Régime:

“Por prisão de Estado — e em especial tratando-se da Bastilha — deve-se entender a prisão dos que cometeram crime ou delito que não é de direito comum, daqueles que, com ou sem razão, são julgados perigosos à segurança do Estado, quer se trate da própria nação, de seu chefe, ou de um grupo mais ou menos importante de cidadãos, grupo por vezes restrito a uma, família. Se se juntar a essa espécie de prisioneiros as personagens muito em evidencia para serem punidas, por crime de direito comum, como qualquer malfeitor vulgar, e a quem parecia dever ser reservada uma prisão excepcional, teremos enumerado as diferentes espécies de delitos que, na Bastilha foram expiados desde Richelieu até a Revolução”

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Uma “lettre de cachet” de 1703 (reinado de Luís XIV ), abrindo “De par le roy” (Em nome do Rei…)

Bastilha, garantia de liberdade

O Rei, no exercício das funções, que o Ancien Régime considerava inerentes à coroa, de chefe supremo das famílias de seu reino, também mandava para a Bastilha os membros da nobreza cujo comportamento não merecia a aprovação de suas famílias. Assim, o jovem Duque de Fronsac, futuro Duque de Richelieu, esteve na velha fortaleza “porque não amava sua mulher”.

A princípio a prisão na Bastilha, bem como a libertação, dependiam exclusivamente de uma “ordem de Rei”, ou seja, de uma “lettre de cachet”, o que significava que não resultavam de processo judiciário regular.

Os contemporâneos não viam nisso a manifestação de uma tirania odiosa, como se poderia supor. Para não nos estendermos na explicação desse fato, limitamo-nos a transcrever a magistral “miseau-point” da questão das “lettres de cachet” feita por Funck-Brentano:

“A autoridade real, por sua existência mesma, era a condição essencial da liberdade na França, e a lettre de cachet era o único meio de que o Rei dispunha para fazer valer essa autoridade. Graças a esse poder latente, que existia em toda a parte, sem se manifestar por fatos tangíveis, as mil e uma autoridades locais eram mantidas em equilíbrio, e no temor de abusar de seu muitas vezes, seu emaranhamento. De onde se chega à conclusão, por certo bem inesperada, de que as lettres de cachet formavam na antiga França a ossatura da liberdade” (L’Ancien Régime, cap. XI).

De resto, a partir da segunda metade do século XVII a Bastilha foi posta sob a autoridade de um personagem de caráter nitidamente judiciário, a um verdadeiro magistrado, embora investido de funções também administrativas: o Lieutenant de Polícia. Ele entra na prisão quando lhe apraz, estabelece comunicação direta e constante com os presos, e inspeciona todos os quartos ao menos uma vez por ano.

Desde então, 24 horas após sua entrada na Bastilha os presos deviam ser interrogados por um Comissário do Châtelet, o tribunal do viscondado de Paris. Embora com algumas exceções, de presos que esperaram duas ou três semanas para comparecer perante o magistrado, essa ordem era conscienciosamente observada.

O Comissário do Châtelet depois de tomar conhecimento das notas que lhe enviava o Lieutenant e de interrogar o preso, remetia o processo verbal do interrogatório, juntamente com sua opinião fundamentada sobre os motivos da prisão, ao próprio Lieutenant, que resolvia se a prisão devia ou não ser mantida. Nos casos mais importantes uma comissão especial, composta de magistrados, é que interrogava os presos. Já não se podia dizer, portanto, que os detidos na Bastilha não eram sujeitos a julgamento.

Reconhecida a injustiça de uma prisão, nova “ordem do Rei” mandava pôr em liberdade o preso. E o melhor é que este era indenizado, quer com uma boa soma em dinheiro, quer com uma pensão vitalícia, quer ainda um emprego público.

No reinado de Luís XVI os conselheiros do Parlamento, juízes da mais alta Corte de justiça de França, inspecionavam a Bastilha com a mesma liberdade que as outras prisões. Por fim, o Ministro Breteuil determinou que nenhuma ordem de prisão fosse aceita pelo Lieutenant da Polícia se não indicasse a duração e os motivos da pena.

Em 1785 foram praticamente abolidas as “lettres de cachet”.

Por outro lado, desde meados do século XVIII o Châtelet manda para a fortaleza da porta Santo Antonio, por sua própria autoridade, sem intervenção do Rei, acusados que estão sendo processados perante aquele tribunal, inclusive por crimes de direito comum.

Destarte a Bastilha foi perdendo progressivamente o caráter de prisão de Estado, de prisão do Rei, e muitos anos antes da Revolução já se tornara uma prisão igual às outras, embora muito mais suave, como se verá.

No interior da Bastilha, a câmara do conselho, esboçada em 1785 por Jean-Honoré Fragonard (1732-1806).

Número de detenções

Ao mesmo tempo que se dava essa evolução, o numero das detenções diminuía. A fortaleza só comportava 42 presos alojados separadamente. Sob Luís XIV, de 1660 a 1715, recebeu 2.228 prisioneiros, o que representa uma media de 40 por ano; no reinado seguinte, de 1715 a 1774, esse número elevou-se a 2567, numa media anual de 43; por fim, no reinado de Luís. XVI, baixou a 289, ou seja uma media anual de 19.

De 1783 a 1789, a Bastilha ficou quase deserta; na ocasião de sua queda continha apenas sete presos. Quatro deles estavam sendo julgados no Châtelet, por terem falsificado letras de cambio; outro, o Conde de Solages, cometera um crime monstruoso e fôra recolhido à Bastilha em consideração à sua família, para evitar o escândalo de um julgamento. Os dois últimos eram loucos.

Assim, a velha fortaleza agonizava. Por isso, e como ficasse muito cara a sua manutenção, o governo decidira demoli-la. Os revolucionários de 14 de julho apenas se anteciparam.

A vida na Bastilha

No interior da Bastilha,
esboçada em 1785
por Jean-Honoré Fragonard
(1732-1806).

A principal nota distintiva da Bastilha era não ter nenhum dos característicos de uma prisão no sentido próprio da palavra. “Meu desejo, rezam as ‘ordens do Rei’, é que vos façais conduzir ao meu castelo da Bastilha” mais do que prisão, era ela um castelo forte onde Sua Majestade recolhia súditos cujo comportamento lhe desagradava.

Daí uma primeira consequencia: a estadia na Bastilha não desonra ninguém, nem mesmo as mais altas personagens do reino. Antes pelo contrário, talvez fosse “distinto” ter lá estado, pois ela era reservada de preferência aos membros da aristocracia: O Lieutenant de Policia D’Argenson diz de alguém, que não merece bastante “consideração” para ser mandado para a prisão real.

Esse é um ponto interessante e que se tem procurado esquecer: a Bastilha era destinada principalmente à nobreza.

“A 14 de julho tomaram a Bastilha, escreve o Padre Rudemare; no dia 15 lá fui por curiosidade. Um maltrapilho disse-me então: ‘Não direis, Mr. le Chevalier, que foi para nós que trabalhamos destruindo a Bastilha, mas sim para vós, pois os miseráveis não tinham lá entrada. Para nós a Bicêtre… Não há por aí uns cobres para beber à vossa saúde?”

(Journal d’un Abbé Parisien).

Sebastião Locatelli, Padre bolonhês, que visitou Paris no tempo do Rei-Sol e dispôs de excelentes fontes de informações, escreve:

“É um favor especial do Rei ser-se condenado a uma tão bela prisão… Ali há; é certo, comodidades e prazeres que nem todos os grandes príncipes têm nos seus próprios palácios, e uma liberdade tão grande que os olhos podem ali gozar agradáveis paisagens”.

O Castelo dispunha de algumas enxovias, úmidas e mal ventiladas, em parte subterrâneas. Sob Luís XIV só iam para lá os presos da mais baixa esfera e os assassinos. No reinado de Luís XV quase só serviam para os insubordinados que maltratavam os guardas ou os companheiros de prisão, bem como para os soldados da guarnição culpados de grave indisciplina. Muito antes do 14 de julho já não eram utilizadas: desde o primeiro Ministério Necker (1776-1778) era proibido deter nas enxovias fosse quem fosse, e nenhum dos guardas interrogados no dia 18 de julho de 1789 se recordava de nelas ter estado algum preso.

Os “hospedes” habitavam os andares superiores, onde dispunham de quartos amplos e arejados, dotados de grandes janelas (que só receberam grades no fim do reinado de Luís XIV), e aquecidos por lareiras.

Uma pintura de testemunha ocular do cerco da Bastilha por Claude Cholat

“Roteiro” de um prisioneiro

Como o ambiente da Bastilha não era propriamente o de um campo de concentração moderno, não havia necessidade de um grande aparato militar para convencer alguém de se recolher aos seus muros. Geralmente um oficial de polícia notificava ao interessado a “ordem do Rei” e o conduzia em um carro de passeio, tomando o cuidado de não deixar morrer a conversa durante o percurso, conhecedores que eram os policiais de então das usages du monde. É o que contam diversas memórias de antigos prisioneiros.

As pessoas “de qualidade”, cientes da “lettre de cachet”; apresentavam-se à prisão sem outro acompanhamento que o de seus parentes ou criados. Entre diversos exemplos lê-se no diário de Du Junca, delegado do Rei na Bastilha, que

“Mr. de Villars tenente-coronel do regimento de infantaria dos Vosges, veio entregar-se à prisão, tendo estado detido na cidadela de Grenoble, de onde veio diretamente sem ser conduzido por ninguém”, e que “Mr. de Jones, inglês”, veio da Inglaterra, em absoluta liberdade, constituir-se prisioneiro da Bastilha.

Chegado à fortaleza, o novo preso era imediatamente conduzido à presença do governador, que o fazia sentar-se para conversarem um pouco. No tempo de Luís XIV, o governador costumava convidar seu novo jurisdicionado, bem como os amigos ou oficiais da policia que tinham acompanhado, a almoçarem ou jantarem em sua mesa.

Enquanto isso preparavam-se os aposentos do recém-chegado. (Com Mr. de Courlandon, coronel de cavalaria, que se apresentou à Bastilha em 26 de janeiro de 1695, aconteceu um fato muito desagradável: não havendo quarto em condições de o receber, teve que passar a noite numa hospedaria próxima e só pode ser preso no dia seguinte …).

Depois de pedir ao prisioneiro que esvaziasse os bolsos (só as pessoas de baixa condição eram revistadas), e de fazer um pacote com seu dinheiro, jóias e armas, conduziam-no aos seus aposentos.

O “regime” penitenciário

Diário de Antoine-Jérôme de Losme,
o major da Bastilha,
descrevendo os dias antes da
queda da Bastilha em 1789

Até o interrogatório o preso era mantido incomunicável e só, a menos que lhe tivessem permitido levar consigo algum criado. A administração facilmente concedia licença para isso, chegando a pagar não só a alimentação como também o ordenado dos criados, inclusive para detidos de classe inferior.

Havia também o cuidado de reunir dois e três parentes no mesmo quarto, para evitar o tédio da solidão. Comovido com o isolamento de Mme. de Fontaine, que não tinha parentes entre os prisioneiros, o Lieutenant da Policia, prendeu também seu marido, o que decididamente era levar as coisas um pouco longe.

Terminado o interrogatório os prisioneiros podiam receber visitas de fora, mais comumente na presença de um oficial da guarnição. Em geral só lhes era permitido falar de questões de família ou de interesses, mas não é caso único o de Bussy-Rabutin que tratava livremente com qualquer de suas visitas e chegava a oferecer jantares a amigos da corte.

A raríssimos presos era recusada autorização para passear pelas torres e pátios do castelo. No pátio interior reuniam-se e em grande número para conversar e divertir-se com as visitas e oficiais da guarnição. Era uma verdadeira vida de corte, elegante, frívola e de grande brilho.

Manda a verdade que se diga que muito mais raro era a permissão de passear pela cidade, embora vários presos dela gozassem…

Tudo isso, bem entendido, quando não se tratava de alguém cuja prisão devesse permanecer secreta. Então, o preso era mantido em completo isolamento e podia ser obrigado a usar uma mascara de sêda para não ser reconhecido pelos guardas (daí a lenda do Mascara de Ferro). Esses casos geralmente de espiões e agentes secretos, são raros e deles não há exemplo no reinado de Luís XVI.

Em seus quartos os detidos faziam o que lhes aprouvesse: uns criavam aves e animais, alguns tocavam instrumentos de música, outros cantavam, bordavam, cosiam, jogavam cartas e xadrez. Não faltavam sequer as intrigas elegantes ou políticas, tão do gosto da corte.

O mobiliário

A princípio o mobiliário desses quartos não era dos melhores, pela simples razão de que não existia. Os presos mandavam buscar de suas casas os móveis que desejassem, ou alugavam-nos do tapeceiro do castelo. Aos que nada possuíam, o Rei mandava fornecer dinheiro, por vezes grandes quantias, que lhes permitia decorar os quartos a seu gosto. A partir do início do século XVIII foram sendo mobiliados definitivamente alguns aposentos, de modo que sob Luís XVI quase todos tinham mobiliário, aliás bem modesto. Mas os presos conservaram o direito de, após o interrogatório, mandar vir de fora os objetos que desejassem.

Por isso alguns quartos eram até luxuosas. O do conde de Belle-Isle, por exemplo, tinha um serviço de linho fino para mesa, uma baixela de prata, um leito guarnecido de damasco vermelho bordado a ouro, quatro tapeçarias, dois espelhos, um guarda-fogo com a mesma guarnição que o leito, dois biombos, poltronas, cadeiras estofadas, mesas, cômodas, sofás, castiçais de cobre prateado etc. E para ocupar os ócios, uma biblioteca de 343 volumes.

Parece que essa questão de livros tinha muita importância. Se um detido, mesmo de classe modesta, não encontrava na biblioteca do castelo alguma obra que lhe interessasse, a administração mandava adquiri-la, ainda que custasse bom dinheiro.

A pão e água…

Mas, “primum vivere …” Antes de se entregarem ao estudo os súditos da Sua Majestade recolhidos ao seu castelo da Bastilha queriam alimentar o corpo (à custa da Real Fazenda, naturalmente). E como comiam! Constantin de Renneville, que esteve preso nos fins do século XVII, no libelo que escreveu contra a Bastilha conta que seu primeiro jantar na prisão constou de

“uma esplêndida sopa de ervilhas e alface, bem preparada e de bom aspecto, com um pedaço de frango; em uma travessa uma suculenta posta de carne, com um molho de salsa; em outra um pastel acompanhado de arroz com vitela; aspargos, cogumelos, trufas, e como último prato uma língua de carneiro guisada. Para sobremesa, biscoitos e maçãs. O carcereiro quis ter a amabilidade de me servir o vinho: era um excelente Borgonha”

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As sextas-feiras e durante a quaresma os presos deviam jejuar: 

“Eu tinha, diz Renneville, seis pratos e uma sopa de marisco. Entre os pratos de peixe vinham sempre fresquíssimos linguados, percas etc”. Passado algum tempo, Renneville começou a receber a pensão dos presos de baixa categoria: “uma boa sopa de pão, um regular pedaço de carne, uma língua de carneiro guisada e dois bolos para sobremesa. E assim se manteve durante todo o tempo em que fui obrigado a permanecer em tão aborrecido local; por vezes o cardápio era aumentado com uma asa ou coxa de frango e dois pequenos pasteis”.

A Tavernier, homem de baixa extração e acusado de conspirar contra a vida do Rei, um dos loucos encontrados na fortaleza no dia 14 de julho, recebeu durante o mês de novembro de 1788, além de suas refeições habituais: quatro garrafas de aguardente, 60 de vinho, 30 de cerveja, duas libras de café, três de açúcar, uma perua, ostras, castanhas, maçãs e peras.

“O governador de Launey, conta Poultier d’Elmotte, vinha frequentemente conversar comigo; procurava saber que espécie de alimentação eu queria e ordenava que me fosse servido o que eu desejasse”.

O Rei também vestia os presos pobres. Não, naturalmente, como hoje se usa, com uniformes de presidiário, mas com casacões almofadados com pele de coelho, casacos forrados de seda e trajes fantasia, tudo feito sob medida. A mulher do comissário Rochebrune procura por toda a cidade uma fazenda de seda branca com flores verdes, para atender o pedido de uma prisioneira, Mme. Sauvé.

“Snr. Major, escreve o preso Hugonnet, as camisas que trouxeram não são as que pedi, pois lembro-me de ter escrito que queria finas e com punhos bordados e as que me mandaram são grosseiras, de mau pano e com punhos próprios para um carcereiro; peço-vos, portanto, devolve-las ao sr. comissário: que as guarde, para mim não servem”.

Bastilha, meio de enriquecimento

Até meados do século XVIII os presos podiam optar por um regime de vida mais modesto e guardar o que sobrasse da importância destinada à sua manutenção. Com isso alguns chegaram a amealhar pequenas fortunas. A partir daquela época, porém, esse dinheiro devia ser aplicado integralmente ao fim a que era reservado.

A liberdade

Por melhor que fosse a vida na Bastilha, os prisioneiros geralmente ansiavam pela liberdade. Esta, como a prisão, resultava de uma “lettre de cachet”.

O governador da fortaleza vinha ao quarto do preso noticiar-lhe que estava livre. Cumpridas as formalidades, mandava servir ao que fôra seu hospede um magnífico jantar de despedida. Se se tratasse de pessoa de qualidade, convidava-o para sua mesa e, feitas as despedidas, mandava conduzi-lo em seu próprio carro acompanhando-o por veres até seu destino.

Naturalmente, a ordem de libertação nem sempre era tomada à risca. Se o preso lutava com dificuldades para se instalar lá fora, permitia-se-lhe que ficasse na Bastilha por mais tempo, até arranjar as coisas. E isso se deu muitas vezes. Muitos antigos prisioneiros — Le Maistre de Sacy, Mme. de Staal [quadro ao lado], Fontaine, o Padre Morellet, Dumouriez, o próprio Renneville, entre outros — referiam-se com saudades aos tempos felizes que passaram no castelo de Santo Antonio.

O enigma da Bastilha

Essa é a verdade sobre a Bastilha. Garantem-no a idoneidade e a autoridade do insigne Funck-Brentano, de cuja obra extraíram dados históricos. Garantem-no as fontes de que se serviu aquele historiador, a saber, os arquivos da famosa prisão de Estado, compostos de milhares de documentos, que foram reunidos na Biblioteca do Arsenal, em Paris, bem como as memórias de numerosos antigos prisioneiros. Como então a Bastilha se tornou símbolo da opressão, da tirania, e sinônimo de prisão aspérrima e desumana?

A explicação se encontra na propaganda revolucionaria, que aliás também conseguiu divulgar uma imagem adulterada de tantas outras instituições do Ancien Régime.

Já nos últimos decênios que antecederam a Revolução a lenda da Bastilha criara raízes na fantasia popular.

“A Bastilha, diz Restif de la Bretonne, era um terrível espantalho, para o qual não me atrevia a olhar quando, ao cair da tarde, passava pela rua Saint-Gilles”.

Chevalier, major da Bastilha, dirigindo-se ao Lieutenant de Policia, fala das histórias que circulavam a respeito da prisão:

“Ainda que completamente falsas, dizia, julgo-as perigosas pela repetição que delas se faz há muitos anos”.

De resto, o mistério de que a Bastilha se criava oferecia campo propicio ao desenvolvimento de toda a sorte de lendas. Quando um preso entrava na fortaleza, em uma carruagem com as cortinas descidas, os soldados da guarda deviam virar-se para a parede ou baixar as viseiras. Todo o pessoal da guarnição estava obrigado a guardar o mais absoluto segredo sobre a identidade dos prisioneiros e a vida que levavam. Ao ser posto em liberdade, o preso era convidado a assinar um compromisso de nada revelar do que tivesse visto no interior dos formidáveis muros do castelo (diga-se de passagem que muitos recusavam-se a assinar tal compromisso, sem que isso retardasse sua libertação, enquanto outros contavam a quem os quisesse ouvir tudo que sabiam e muito do que não sabiam, não constando que tenham sido incomodados por esse motivo).

Já ficou dito que a autoridade do Rei na França de antes da Revolução era a condição mesma da ordem. Seus fundamentos eram a tradição, e o amor e temor do povo. Amor aos filhos pelo pai, a autoridade real tendo se originado historicamente da autoridade paterna. E temor igualmente filial, resultante mais da grandeza, da majestade, do esplendor da realeza do que propriamente de sua força efetiva.

Apresentar a Bastilha como um temível instrumento de opressão e tirania foi um dos muitos meios de que se valeu a propaganda revolucionaria para resfriar o amor do povo pelo Rei.

Mas, por outro lado, isso aumentava o temor, que era justamente o freio daqueles que, constituindo a borra da população, eram os mais seguros cooperadores potenciais da obra revolucionaria. Levando essa mesma ralé a derrubar aquilo que lhe apresentavam como o símbolo do poder real, a Revolução conseguiu fazê-la sentir a fraqueza do Rei e sua própria força.

Perdido o respeito pela autoridade paternal do Rei, o povo entregar-se-á a todos os excessos e a anarquia estender-se-á pela França. Para reimplantar a ordem Napoleão usará um guante de ferro e criará a formidável máquina administrativa e policial do Estado moderno.

A verdadeira importância da jornada de 14 de julho de 1789 reside nisso; no enorme impulso que deu à transição da velha França tradicional e orgânica, com suas liberdades e franquias, para a França administrativa e policial dos tempos modernos. O enigma está em que ainda hoje ela seja comemorada como a aurora da liberdade.