
Luis Dufaur
A reunião em torno “da lareira, da panela e da mesa comum, que uniu os seres humanos durante pelo menos 150.000 anos, poderia desaparecer”, segundo o historiador inglês Felipe Fernández Armesto [foto abaixo].
O paradoxo é que esse retrocesso é obra da tecnologia.
O Prof. Felipe é autor do ensaio Comida, culinária e civilização (ed. Tusquets), sobre a história da refeição, no qual demonstra que “se comermos sem contato de alma em frente das telas digitais, voltaremos três milhões de anos atrás”.
Professor convidado de universidades e institutos de pesquisa, Fernández Armesto é autor de um grande número de obras concernentes à história com uma perspectiva sociológica e cultural.
“Se deixarmos a mesa familiar, se comermos na frente das telas ou caminhando isolados pelas ruas, voltaremos a um estágio na história próprio dos hominídeos pré-civilização. A um sistema de vida semelhante ao de dois ou três milhões de anos atrás, dos hominídeos catadores que comiam desesperadamente, sem pensar nas possibilidades de usar a mesa para criar sociedade, promover afeto e planejar um futuro melhor”, disse, em entrevista ao jornal “La Nación” (11-10-19).
Fernández Armesto observa que “não pode haver convívio sem refeição partilhada”, da mesma maneira como é “impossível imaginar uma economia sem dinheiro” ou sem intercâmbio.
Portanto, é “legítimo considerar a refeição como o momento mais importante do mundo: é o que mais ocupa a maioria das pessoas na maioria das vezes”, deduz ele.
Segundo o pesquisador, as causas que contribuem para o desaparecimento gradual do hábito de se sentar juntos para comer e conviver são “mudanças sociais paradigmáticas” que causam danos que “estão ocorrendo”.

Quais? — O “desligamento familiar, golpes intergeracionais, anomia, rejeição de tradição, abandono do senso de pertencer à mesma família humana, no bom sentido da palavra, a predominância de um individualismo existencialista alheio à necessidade humana de manter relações vivas com outros seres humanos de carne de osso”.
O autor se posiciona num ponto de vista sociológico e ético. Porém, se analisarmos os ensinamentos do catolicismo, encontraremos momentos religiosos nos quais Deus escolheu refeições para marcar momentos augustos da Revelação.

Nosso Senhor Jesus Cristo começou sua vida pública participando de um grande banquete: o das bodas de Canaã. Ali fez seu primeiro milagre para um grande número de pessoas: transformou a água das ânforas num precioso vinho.
Quando chegou a noite junto ao Lago de Galileia e Jesus percebeu que as multidões estavam sem comer. Ele sentiu que passavam fome como um rebanho sem pastor, multiplicou os pães e peixes e mandou os Apóstolos distribuí-los com tanta abundância que sobraram cestos repletos.
Simbolizou que a Igreja deveria alimentar os povos com a palavra do Evangelho e que os Apóstolos voltariam com tantas conversões que encheriam cestos.
Quando os judeus saíram da escravidão do Egito, a primeira instrução de Moisés foi que jantassem bem. É a origem da ceia pascal que repetimos até hoje no Domingo de Páscoa.
E foi precisamente durante uma ceia pascoal que Jesus instituiu a Missa e a Eucaristia, cujos significados místicos são frequentemente associados à alimentação em torno de uma mesa, obviamente sagrada: o altar.
Outra prefigura eucarística é o maná que alimentou os judeus no deserto.
Após a Ressurreição, Jesus se tornou patente aos apóstolos na hora de partir o pão na mesa em Emaús. E assim poderíamos prosseguir com numerosos exemplos.
Basta mencionar que as grandes festas litúrgicas ou religiosas são acompanhadas com nobres, mas deliciosas refeições em comum, familiares e sociais, como no Natal, na Páscoa, nas festas dos santos padroeiros etc.
Porém, o professor que citamos observa que sob o pretexto de progresso e modernidade estamos regredindo ao primitivismo. Morre o convívio, apaga-se a religião no lar e na sociedade, se estiolam a cultura e o contato entre as almas com a morte dos almoços e jantares em que predomina o contato de alma a alma entre familiares.
Essa decadência está sendo feita sob o pretexto, continua o ensaísta, de “mudanças tecnológicas que facilitam o abandono social: uma rede eletrônica que não aperta sua mão nem beija seu rosto; formas de entretenimento solitário, sem trocas emocionais com outras pessoas”.
Quantas vezes num bar vemos grupos de rapazes e moças que não trocam uma palavra sequer, cada qual grudado em seu smartphone? Ou estudantes e até professores universitários que na mesa não falam nada e no máximo cada um exibe uma imagem ou uma mensagem de texto que apareceu em seu dispositivo móvel?
No livro, o Prof. Fernández Armesto trata da história da conversa e do convívio nas refeições como assunto inseparável de outro tipo de relacionamento entre os seres humanos entre si e com a natureza: o nível da culinária que desperta a inteligência.
Ele traça conexões em cada estágio entre a comida do passado e a maneira como é consumida hoje.
Os belos serviços e talheres desaparecem e vai ficando o sanduíche dentro de um envelope num McDonald, ou fast-food equivalente, e um copo de plástico descartável sem muita preocupação se a mesa fica suja ou não, e se o conviva sentado em frente se sentiu atendido ou interpretado.
Por isso, o professor acha que é possível identificar na história dos povos civilizados oito revoluções na história da refeição. Essas afetaram outros aspectos da história da humanidade, tornando-a ou mais convivial e amável, ou mais insensível e brutal.