
✅ Fonte: Revista Catolicismo, Nº 881, Maio/2024
Pergunta — A declaração Dignitas Infinita, recentemente publicada pelo Dicastério para a Doutrina da Fé, me deixou no paladar um gosto agridoce. Houve condenação ao aborto, à ideologia de gênero e à eutanásia, mas chocou-me que fizesse referências elogiosas à Declaração Universal dos Direitos do Homem, da ONU, pois ela serve de fundamento para a promoção da agenda “progressista” das correntes de esquerda, que inclui exatamente os “avanços” que o documento do Vaticano condena. Pergunto se não há algo de errado nisso aí.
Resposta — Agradeço a pergunta, pois ela descreve a impressão que eu mesmo tive na primeira leitura da Declaração Dignitas Infinita, o que me levou a refletir a respeito do assunto e a reler alguns textos de São Tomás de Aquino que ajudam a esclarecê-lo.
Penso que muitas pessoas que leram matérias a respeito do seu lançamento podem ter tido a mesma sensação e, certamente poderão se beneficiar com uma análise mais aprofundada do tema, que está no centro de muitos debates contemporâneos: o respeito pela dignidade humana.
Tal como diz nosso missivista, a quarta seção é uma aplicação prática dos ensinamentos do documento e oferece uma breve sinopse do magistério papal sobre algumas violações particularmente chocantes da inalienável dignidade que deve ser reconhecida a todo ser humano, como são o aborto, a maternidade sub-rogada (a famigerada “barriga de aluguel”), a eutanásia e os postulados da ideologia de gênero.
Essa seção foi saudada pelos movimentos pró-vida e pró-família como um apoio às suas atividades, mesmo que a Declaração não tenha, pela exiguidade da exposição, a profundidade doutrinária dos documentos precedentes, como Evangelium Vitae (aborto e eutanásia) e Donum Vitae (maternidade sub-rogada).
Alguns lamentaram também, e com razão, que ao condenar a ideologia de gênero e a transexualidade, a Dignitas Infinita não tenha feito referência à homossexualidade; condenasse o “ventre de aluguel”, e não dissesse uma só palavra sobre a fecundação in vitro, que é sempre imoral, inclusive para um casal unido pelo matrimônio.

[O Céu – detalhe do quadro do Juízo Final – Fra Angélico (1395-1455). Museu de São Marcos, Florença]
Somente Deus possui dignidade infinita
A parte mais controvertida é, contudo, a doutrinária que vai da introdução até a terceira seção. O primeiro reparo é quanto ao próprio título do documento: Dignitas Infinita.
A seção de Apresentação explica que a expressão “dignidade infinita” foi empregada pelo Papa João Paulo II em um encontro com pessoas portadoras de deficiência “a fim de mostrar como a dignidade de cada ser humano vai além de toda aparência exterior ou de toda característica da vida concreta das pessoas”.
Ela foi depois retomada pelo Papa Francisco na sua exortação apostólica Evangelii Gaudium numa passagem na qual convidou a Igreja a “confessar um Pai que ama infinitamente cada ser humano” e a descobrir que “por isso mesmo lhe confere uma dignidade infinita”.
Inclusive após esse esclarecimento, a expressão continua questionável, pois somente Deus, Ser infinito e infinitamente santo, possui dignidade infinita. Todas as demais criaturas, inclusive os anjos, por serem limitados, possuem dignidade insondável, mas não infinita.
O amor infinito de Deus certamente as eleva a um altíssimo grau de dignidade, mas não lhes confere, ao menos no plano natural, uma dignidade realmente infinita, mas apenas um reflexo limitado de Sua própria dignidade.
No seu Comentário às Sentenças de Pedro Lombardo, São Tomás explica que a bondade da criatura pode ser considerada de duas maneiras:
“Ou segundo a criatura considerada em si mesma e absolutamente, e neste caso sempre pode haver alguma coisa melhor do que qualquer criatura; ou então por comparação dela ao Bem Incriado, e neste caso a dignidade da criatura recebe certa infinitude, por parte do Infinito ao qual se compara, como por exemplo à natureza humana de Cristo, na medida em que está unida a Deus; à Bem-aventurada Virgem, na medida em que é Mãe de Deus; à graça por quanto nos une a Deus; e até ao universo, na medida em que está ordenado a Deus” (os destaques são nossos).
Note-se que essa “certa infinidade”, São Tomás a atribui até ao “universo criado” no seu conjunto. Portanto, não é algo exclusivo do homem: até dos pedregulhos se pode dizer, nesse sentido relativo, que eles têm uma dignidade infinita. A diferença está no fato de que Deus quer para os homens e os anjos um bem maior do que as demais criaturas irracionais, que é de poder conhecê-lo e amá-lo na Terra e possuí-lo eternamente no Céu.
Fica ainda mais claro que, no pensamento de São Tomás, a dignidade ontológica do homem não é infinita olhando para uma passagem na qual fala da satisfação que Nosso Senhor ofereceu ao Padre Eterno pelos nossos pecados: “Nenhum mero homem tem a dignidade infinita requerida para satisfazer plenamente uma ofensa contra Deus. […] Portanto, somente o Verbo unigênito de Deus, verdadeiro Deus e Filho de Deus, assumiu a natureza humana e quis sofrer a morte para purificar toda a raça humana endividada pelo pecado” (De Rationibus Fidei, capítulo 7).
Mais além, São Tomás afirma que “a natureza humana é mais digna em Cristo do que em nós” já que “em Cristo, ela existe na pessoa do Verbo” (Summa Theologica III, q2, a2,2). Logo, se Sua dignidade ontológica excede a nossa, como é possível todos os homens terem uma dignidade infinita? Mais ainda, ele afirma também que “pecando, o homem se afasta da ordem da razão e, em consequência, decai da dignidade de sua humanidade” (idem II-II q2, a2,3), o que obviamente não poderia acontecer caso os seres humanos possuíssem uma dignidade infinita.
É somente no plano sobrenatural que se pode dizer, com certa propriedade, que o homem, pela possessão de Deus na glória do Céu, adquire uma dignidade infinita. De fato, diz São Tomás mais adiante: “A bem-aventurança criada [a glória celeste] inclui um certo infinito pelo fato de estar unida a um Bem infinito: considerada em si, de fato, ela inclui todos os bens dos quais o homem pode participar”.
Mas até essa infinitude da dignidade sobrenatural é relativa, pois o mesmo santo acrescenta logo a seguir que “se a capacidade da natureza fosse maior, a participação seria maior e a bem-aventurança mais perfeita, assim como a bem-aventurança de um santo é mais perfeita que a de outro”.

[ Êxtase de São Pedro de Alcântara – Francesco Fontebasso (1707–1769). Capela Giustiniana, San Francesco della Vigna (Veneza)].
O risco da “divinização do homem”
O documento do Dicastério para a Doutrina da Fé reconhece implicitamente que a expressão “dignidade infinita”, aplicada ao homem, comporta um exagero. Ele afirma que o Papa Wojtila a usou “a fim de mostrar como a dignidade de cada ser humano vai além de toda aparência exterior”. Cita também o próprio Papa Francisco, que considerou tal reconhecimento “como condição fundamental para que as nossas sociedades sejam verdadeiramente justas”.
Tratar-se-ia, portanto, de um exagero didático visando um efeito prático: o respeito pela dignidade de todo ser humano e especialmente dos mais fracos. O problema é que tal exagero contribui para agravar um dos maiores males da civilização moderna, desde que ela se afastou das verdades do Evangelho: a divinização do homem.
Foi a Igreja que restituiu ao homem sua dignidade originária já que, com a lei do amor resgatou a humanidade da inclemência do paganismo e de suas consequências sociais, como o infanticídio dos descapacitados, a escravidão ou o estatuto inferior da mulher.
Mas, ao mesmo tempo que ela defendia a dignidade dos seres humanos, a Igreja colocava o acento no fato de que todo homem é digno de respeito e proteção acima de tudo por ser criatura de Deus e por estar chamado a possuí-Lo eternamente. De onde, a frase de São Leão Magno: Agnosce, o Christiane, dignitatem tuam (“reconhece, ó cristão, a tua dignidade”).
Mas, já nos albores da Renascença e do Humanismo começou a vicejar uma exaltação do homem que punha em surdina sua condição de criatura e seu fim eterno, acentuando, pelo contrário, a grandeza que ele possui pelo mero fato de ser inteligente e livre de seus atos. No seu Discurso sobre a Dignidade do Homem, o conhecido humanista João Pico della Mirandola imagina Deus dizendo ao homem: “Tu, a quem nada limita, por teu próprio arbítrio, entre cujas mãos te deixei, te defines a ti mesmo”.
Essa exaltação da liberdade, sem referência a uma normatividade exterior e transcendente, como base da dignidade humana, resultou no livre exame protestante e na emancipação dos fiéis de toda autoridade religiosa terrena. Mais tarde, desembocou na emancipação do homem em relação ao próprio Deus, traço característico da filosofia Iluminista do século XVIII.

Daí o conceito ateu de dignidade humana do filósofo alemão Emanuel Kant (citado elogiosamente na Dignitas Infinita), baseado no princípio de que o homem tem em si mesmo seu próprio fim e encontra na sua razão individual a norma suprema que deve regular o exercício de sua liberdade. O desligamento total de toda lei superior, natural ou divina, está expressa no famoso aforismo de seu imperativo categórico: “Age como se a máxima de tua ação devesse ser erigida por tua vontade em lei universal da natureza”.
Já no século XIX, o filósofo utilitarista inglês John Stuart Mill concluiu que os seres humanos têm independência até em relação à sociedade, já que “[sobre] si mesmo, sobre seu próprio corpo e mente, o indivíduo é soberano” e seu único limite operativo é o respeito da soberania dos outros. Segundo ele, é nesta absoluta soberania sobre si mesmo — atributo possuído, na realidade, somente por Deus — que estaria radicada a dignidade humana.
Estímulo ao agnosticismo das declarações de direitos humanos
Ora, foram esses princípios filosóficos que inspiraram a Declaração Universal dos Direitos Humanos da ONU, lastreada na premissa de que todos os homens possuem uma dignidade natural porque dotados de uma autonomia objetiva, radicada na razão e na consciência individual.
Resulta, portanto, escandaloso que a Declaração Dignitas Infinita junte sua voz ao coro agnóstico das declarações de direitos humanos, afirmando sem nenhuma ressalva que “nos nossos dias, o termo ‘dignidade’ é utilizado prevalentemente para sublinhar o caráter único da pessoa humana, incomensurável em relação aos outros seres do universo” e que, neste horizonte, “compreende-se o modo em que é usado o termo dignidade na Declaração das Nações Unidas de 1948, em que se trata ‘da dignidade inerente a todos os membros da família humana e dos seus direitos, iguais e inalienáveis’”.
Mais grave ainda, a Declaração, fazendo omissão total da origem divina de qualquer direito do homem face aos seus semelhantes, assevera em tom laico que “somente este caráter inalienável da dignidade humana permite que se fale de direitos do homem” (n. 14).
O escândalo se agrava ainda pela afirmação de que “na cultura moderna, a referência mais próxima ao princípio da dignidade inalienável da pessoa é a Declaração universal dos direitos do homem” (n. 23) e que “o caminho da paz exige o respeito dos direitos humanos, segundo aquela simples, mas clara, formulação contida na Declaração universal dos direitos humanos, cujo 75º aniversário celebramos há pouco” (n. 56).
Esses elogios à carta magna ateia dos tempos modernos dão crédito às assombrosas palavras de Paulo VI, no discurso de encerramento do Concílio Vaticano II, afirmando que do encontro da religião do Deus que se fez homem com a do homem que quer ser Deus, não resultou um combate, mas uma repetição da história do bom samaritano. Pelo que, dizia o Pontífice, “vós, humanistas do nosso tempo, que negais as verdades transcendentes, dai ao Concílio ao menos este louvor e reconhecei este nosso humanismo novo: também nós — e nós mais do que ninguém somos cultores do homem”.

Hipervalorização desequilibrada da dignidade ontológica
Essa glorificação naturalista do homem, presente na Dignitas Infinita, introduz um desequilíbrio na abordagem que o documento das relações entre a dignidade ontológica comum a todos os homens (o fato de ser agraciado por Deus de uma alma espiritual, dotada de inteligência e vontade) e a dignidade ou indignidade moral que resulta do bom ou mau uso dessas faculdades no exercício da liberdade.
Não cabe dúvida de que o bebê no seio materno, a criancinha sem uso de razão, o ancião que perdeu a consciência ou o psicopata cuja razão está alterada possuem a dignidade ontológica comum a todos os seres humanos e devem ser respeitados e protegidos na sua existência. Mas é evidente que para os demais, ou seja, todos os homens capazes de agir de maneira consciente e voluntária, é a dignidade moral que é prioritária. Do contrário, a sociedade não poderia honrar e premiar os que praticam o bem, nem castigar os que praticam o mal. Os bons e os maus deveriam ser tratados igualmente, em nome da sua dignidade ontológica inalienável e inviolável.
É por essa hipervalorização desequilibrada da dignidade ontológica (e a correspondente desvalorização da dignidade ou indignidade moral) que a Declaração reitera o ensinamento equivocado do Papa Francisco no sentido de que a pena de morte seria radicalmente inaceitável por constituir uma violação da “dignidade inalienável de toda pessoa humana para além de toda circunstância”. Essa afirmação é radicalmente contrária àquilo que é ensinado pelas Sagradas Escrituras, pelos Padres e Doutores da Igreja e pelo magistério constante dos papas e dos concílios.
A “dignidade infinita” ecoa no “inferno vazio”
Ainda mais grave é a hipervalorização da dignidade ontológica no que se refere à vocação sobrenatural dos filhos de Adão. De um lado a Declaração minimiza a ferida e o escurecimento à dignidade do homem produzida pecado, mencionando-o uma só vez (aliás, sem dizer que é acima de tudo uma ofensa a Deus e ressaltando apenas que é um ato contrário à dignidade humana); mas de outro lado ressalta, citando o Concílio Vaticano II, que “com a encarnação o Filho de Deus se uniu de certo modo a cada homem” (Gaudium et spes, n. 22) e, com sua Ressurreição, Ele revelou a vocação do homem à comunhão com Deus (idem, n. 19), insinuando que todos os homens se salvam incondicionalmente.
A desconfiança de ser esta a interpretação correta viu-se reforçada pela resposta do Cardeal Victor Manuel Fernandez, na conferência de imprensa de apresentação do documento, à pergunta de uma jornalista como se compatibilizava a dignidade “infinita” do homem com a verdade de fé do inferno. Ao que ele respondeu:
“O Papa Francisco o tem dito muitas vezes: a afirmação sobre a possibilidade da condenação ao inferno é sobretudo uma espécie de culto à liberdade humana; que o ser humano possa escolher, que Deus queira respeitar essa liberdade, mesmo se é uma liberdade limitada e mesmo se por vezes seja uma liberdade escurecida, doente, mas que Deus queira respeitá-la. Esse é o princípio. Mas, depois, a pergunta que se faz o Papa Francisco é: com todos os limites que verdadeiramente nossa liberdade possui, não será que o inferno está vazio? Essa é a pergunta que por vezes se faz o Papa Francisco”.
Como observou perspicazmente uma comentarista francesa: “à ‘dignidade infinita’ responde, fazendo eco, o ‘inferno vazio’”…
Se é assim, para que então se esforçar em observar os Mandamentos e praticar nós mesmos o que pedimos no Pai-Nosso: “Faça-se a vossa vontade assim na Terra como no Céu”? Para que frequentar os sacramentos e desenvolver a vida interior e a piedade?
Muito pelo contrário, é reconhecendo nossa indignidade de pecadores que devemos apresentar-nos diante de Deus como o publicano da parábola (Lc 18, 9-14), o qual “não ousava sequer levantar os olhos ao céu, mas batia no peito, dizendo: Ó Deus, tem piedade de mim, que sou pecador!”. E foi ele, e não o fariseu orgulhoso, que voltou para casa justificado, pois “todo o que se exaltar será humilhado, e quem se humilhar será exaltado”.