Pergunta — No nosso grupo de oração temos rezado muito pelas vítimas da tragédia no Rio Grande do Sul. Em nossas conversas, veio à tona a questão de por que Deus permite tanto sofrimento. Um dos participantes disse que via essa tragédia no Sul como um castigo pela difusão do ateísmo e do satanismo. Uma amiga respondeu que não podia ser, pois essa ideia de que Deus pune não é cristã, mas pagã, e que até tinha lido que um organismo do Vaticano declarou que as aparições e mensagens que anunciassem castigos não podiam ser sobrenaturais. Pergunto se isso é verdade. Obrigada.
Resposta — Muitos têm me perguntado sobre o que achar da tragédia causada pelos temporais no Rio Grande do Sul. Aproveito para responder não somente a essa pergunta, mas também à questão geral de se é compatível com a bondade infinita de Deus o fato de permitir desastres que acarretem grandes sofrimentos a muitas pessoas.
Começo por confirmar a informação dada pela amiga da missivista, de que um dos organismos da Santa Sé — no caso específico, a Pontifícia Academia Mariana Internacional — criou recentemente um órgão denominado Observatório sobre aparições e fenômenos místicos ligados com a Santíssima Virgem, destinado a ajudar os bispos a fazerem o discernimento a respeito de tais fenômenos. Um dos membros do comitê diretivo desse Observatório é o frade franciscano Stefano Cecchin, que é também o presidente da referida Academia. Em várias entrevistas de imprensa, ele repetiu que, além dos aspectos materiais e morais, um dos principais critérios para se avaliar a autenticidade das aparições e mensagens da Virgem é o de se elas contêm anúncios de castigos, pois esse é um “sinal de alerta”: “Quer uma mãe castigar seus filhos, enviando-lhes doenças, a morte…? De nenhuma maneira. As aparições que falam de castigos de Deus são absolutamente falsas.”*
Essa afirmação do Pe. Cecchin é insustentável do ponto de vista teológico, pois contraria não somente o ensinamento do Antigo e do Novo Testamento, dos Padres e Doutores da Igreja, como também o do magistério constante dos Papas e da Hierarquia. Além do mais, o frade franciscano declara como sendo absolutamente falsas aparições marianas reconhecidas pela Igreja e que gozam até de uma festa litúrgica, como as da Medalha Milagrosa, La Salette, Lourdes e Fátima. Por fim, seu argumento é sentimental e falacioso, pois finge ignorar que em suas aparições Nossa Senhora afirma ser Deus quem vai castigar o mundo, e não Ela, cujo papel é advertir misericordiosamente a humanidade e pedir a sua conversão precisamente para evitar os castigos.
Castigo divino não é apenas na eternidade
O pressuposto da afirmação de que uma aparição que fale de castigos é absolutamente falsa só pode ser a de que Deus não castiga nunca. Contudo, tal pressuposto é desmentido nas Sagradas Escrituras e no Credo.
A começar pela verdade da existência do inferno — a Geena,da qual falei em artigo anterior —, lugar de tormentos espirituais e físicos, com a circunstância agravante de ser um castigo eterno. E não basta assegurar, como fez o Cardeal Fernández na apresentação do documento Dignitas Infinita (ver nossa edição anterior), que Deus se limita a respeitar a liberdade do homem que deseja afastar-se d’Ele.
Pelo contrário, no Credo professamos que Jesus “há de vir julgar os vivos e os mortos”. E deixou claro que, quando o Filho do Homem voltar na sua glória, Ele próprio separará os bons dos maus, e dirá a estes últimos: “Retirai-vos de mim, malditos! Ide para o fogo eterno destinado ao demônio e aos seus anjos” (Mt 25, 41).
Mas Deus não premia ou castiga os homens somente na eternidade, depois de seu percurso neste Vale de Lágrimas. Alguns recebem castigos ainda nesta vida, seja para incitá-los à conversão, seja para que paguem com mérito aqui na Terra o débito por suas faltas, em lugar de pagá-las sem mérito no Purgatório.
Quanto às entidades coletivas, como nações, regiões, cidades, famílias etc., como elas não existirão na outra vida, são necessariamente premiadas ou castigadas por Deus aqui na Terra. É o que Santo Agostinho demonstra ao longo de sua obra A Cidade de Deus.
Disso dão testemunho as Sagradas Escrituras, que mostram Deus manifestando Seu julgamento no início da História da Salvação, nas vicissitudes do Povo Eleito, na vida de Nosso Senhor, nos primórdios da Igreja e no fim dos tempos. No início, Deus pronunciou sentença de castigo sobre toda a raça humana, como consequência da queda de seus representantes, os nossos primeiros pais (Gênesis 3).
Tanto a morte quanto as enfermidades e misérias que a precedem nesta vida de exílio foram consequências daquela sentença original. Depois houve duas novas condenações gerais por meio das grandes catástrofes constituídas pelo dilúvio (Gênesis 6, 5) e pela dispersão dos povos após a queda da Torre de Babel (Gênesis 11).
Outros castigos notáveis, que golpearam grupos humanos específicos, foram a destruição de Sodoma (Gênesis 28), as pragas do Egito (Êxodo 6 e 12), o terremoto que engoliu Coré e seus seguidores (Números 16), o mal que caiu sobre os povos vizinhos, opressores de Israel (Ezequiel 25 e 28), e o Cativeiro dos próprios judeus na Babilônia por terem se prostituído adorando falsos deuses (Jeremias). Todos esses castigos são apresentados na Bíblia como resultado de um julgamento divino.
Entidades coletivas são castigadas aqui na Terra
Essa convicção de que Deus premia e castiga nesta Terra ficou tão ancorada no espírito do Povo Eleito que, no tempo de Nosso Senhor, muitos rabinos passaram a ensinar que todo o mal que sobrevém ao homem — inclusive às pessoas individualmente consideradas — é um castigo especial do alto. Nosso Senhor refutou essa interpretação errada.
Interrogado pelos seus discípulos se a cegueira de nascença de um homem com quem eles se cruzaram na estrada provinha de um pecado dele ou de seus pais, Jesus respondeu: “Nem este pecou nem seus pais, mas é necessário que nele se manifestem as obras de Deus”. De fato, depois de curado, aquele homem enfrentou corajosamente os fariseus que os haviam expulsado da sinagoga, e foi o primeiro a prostrar-se diante de Jesus e adorá-Lo (Jo 9, 1-41).
Jesus também negou que os galileus mortos por Pilatos, cujo sangue este misturou num sacrifício pagão, fossem mais pecadores do que os outros galileus, ou que os 18 homens que morreram esmagados pela Torre de Siloé fossem mais culpados do que os demais habitantes de Jerusalém (Lc 13, 1-4).
Mas, ao mesmo tempo, Nosso Senhor afirmou peremptoriamente que as cidades pecadoras seriam castigadas. Quando mandou os 12 Apóstolos pregarem, disse-lhes que, se numa delas não fossem recebidos ou não ouvissem suas palavras, ao saírem deveriam sacudir até o pó de seus pés, acrescentando: “Em verdade vos digo, no dia do juízo haverá mais indulgência com Sodoma e Gomorra que com aquela cidade” (Mt 10, 15).
E, após receber os discípulos de São João Batista, “Jesus começou a censurar as cidades, onde Ele tinha feito grande número de milagres, por terem recusado arrepender-se: ‘Ai de ti, Corozaim! Ai de ti, Betsaida! Porque, se tivessem sido feitos em Tiro e em Sidônia os milagres que foram feitos em vosso meio, há muito tempo elas se teriam arrependido sob o cilício e a cinza. Por isso, vos digo: no dia do juízo, haverá menor rigor para Tiro e para Sidônia que para vós! E tu, Cafarnaum, serás elevada até o céu? Não! Serás atirada até o inferno! Porque, se Sodoma tivesse visto os milagres que foram feitos dentro dos teus muros, subsistiria até este dia. Por isso, te digo: no dia do juízo, haverá menor rigor para Sodoma do que para ti!’” (Mt 11, 20-24).
Mais impressionante ainda é a profecia de Nosso Senhor sobre a destruição do Templo e da cidade de Jerusalém: “Dias virão em que destas coisas que vedes [as belezas do templo] não ficará pedra sobre pedra […]. Quando virdes que Jerusalém foi sitiada por exércitos, então sabereis que está próxima a sua ruína. Os que então se acharem na Judeia fujam para os montes; os que estiverem dentro da cidade retirem-se; os que estiverem nos campos não entrem na cidade. Porque estes serão dias de castigo, para que se cumpra tudo o que está escrito” (Lc 21, 6, 20-22).
Pode ser castigo, pode ser misericórdia
Em vista de todos esses testemunhos da Revelação, como é possível pressupor que Deus não castiga e afirmar que toda profecia de Nossa Senhora que fala de castigos é absolutamente falsa? Se o Pe. Cecchin tivesse vivido em Jerusalém no ano 70, seu preconceito o teria levado a não fugir para os montes e abandonar a cidade sitiada…
Postas essas premissas, estudemos rapidamente a espinhosa questão levantada por um dos participantes do grupo de oração, a saber, se as enchentes no Rio Grande do Sul podem ser consideradas um castigo divino.
A minha resposta é: tanto podem ser como não ser. A catástrofe é o resultado de fenômenos naturais introduzidos por Deus no Plano da Criação, com múltiplas finalidades dignas da Sua sabedoria e bondade. Ela pode acontecer com o intuito de obter um bem físico maior — como aquele de um ciclone, que ao mesmo tempo em que provoca danos purifica o ar —, como pode ser em função de um bem moral, como o de aguçar o espírito do homem, estimulando-o a estudar a natureza para se defender de seu poder destrutivo e favorecer assim o progresso da ciência.
Também, como acabamos de ver acima, a fé nos revela que Deus às vezes o faz para infligir um castigo exemplar. Mas, finalmente, uma tragédia pode ser uma manifestação benevolente da Sua misericórdia. Quem sabe quantas graças Deus pode conceder às vítimas, no meio do sofrimento, para salvá-las da morte eterna ou para uni-las a Ele e fazê-las ganhar grandes méritos por sua expiação?
Todo o mundo pode fazer conjecturas, mas ninguém pode saber ao certo (a menos que receba uma revelação privada) quais são os desígnios da Sabedoria infinita de Deus que O levaram a permitir uma tragédia. Esses desígnios são para nós um mistério insondável que vai muito além da capacidade de conhecimento das nossas inteligências limitadas.
Deus nos chamou para a vida eterna
Logo, conclui-se, em primeiro lugar, que as grandes catástrofes não são necessariamente um castigo, porque podem também ser uma voz — certamente terrível, mas paterna — da bondade de Deus, com o intuito de nos lembrar que esta vida terrena é apenas uma passagem e que a meta última da nossa vida, que é imortal, se encontra além. Com efeito, se a Terra não trouxesse dificuldades e até catástrofes, exerceria sobre nós um fascínio irresistível pelo qual acabaríamos nos esquecendo muito facilmente de que fomos criados para o Céu.
Em segundo lugar, é preciso admitir que as catástrofes podem às vezesser uma exigência da Justiça de Deus sob a forma de castigo. É precisamente esse o núcleo daquelas aparições de Nossa Senhora aprovadas pela Igreja, que ameaçam a humanidade com castigos se os homens não se arrependerem de seus pecados e não fizerem penitência, como os habitantes de Nínive (Jonas cap. 1-4).
Mistério de infinita sabedoria e de infinita bondade
Mas alguém poderia objetar que a catástrofe é cega, porque, ao punir os culpados, atinge também os inocentes. Como conciliar esse efeito ruim sobre os inocentes com a bondade de Deus e a Providência divina? A resposta é que Deus não poderia fazer um terremoto ou uma enchente que atingisse somente os culpados e respeitasse os inocentes, sem multiplicar os milagres ou modificar profundamente o plano da Criação.
Foi por isso que Ele mandou Noé construir a Arca antes do Dilúvio e ordenou a Ló e a sua família que saíssem de Sodoma antes de castigar a cidade (Gênesis cap. 6-8 e 19). Deus raramente poupa inocentes no meio dos castigos realizando um milagre; tampouco é obrigado a multiplicar milagres ou renunciar ao Plano da Criação para salvar a vida de inocentes.
Além disso, Deus é o Senhor da vida e da morte, acompanhando o homem na Terra e estabelecendo a hora e a forma de morte de cada um. Portanto, o inocente que morre em decorrência de uma catástrofe geral que pune os culpados se encontra nas mesmas condições de todos os justos surpreendidos pela morte. Para esses inocentes, a morte no meio da catástrofe não é um castigo de culpa pessoal, mas a execução de um decreto da Sabedoria divina para o bem deles, já que irão para o Céu.
Em resumo, diante das grandes catástrofes somos levados a ver somente a superfície das coisas, e não a sua substância íntima. Vemos o poder destruidor do cataclismo, mas não vemos o Plano de Deus escondido sob a força cega da natureza. Este desígnio divino nem sempre é o mesmo; ora é um mistério de justiça, ora é um mistério de misericórdia, mas é sempre um mistério da Sua infinita Sabedoria e Bondade.
Com essas considerações na alma, rezemos com afinco a Nossa Senhora Aparecida por todas as vítimas das enchentes no Rio Grande do Sul, pedindo a Ela o reerguimento material, mas sobretudo espiritual, daquele grande Estado da Federação, chamado a uma alta vocação.
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