EPÍSTOLA AOS FILIPENSES

“Alegrai-vos sempre no Senhor; e torno a dizê-lo: alegrai-vos”

  • Plinio Maria Solimeo

Só pelo fato de terem atingido a santidade praticando as virtudes teologais e as cardeais em grau heróico os santos não deixam de ser bem humanos. Pois estão sujeitos às paixões como todo mortal, e as devem ordenar para atingir seu fim, que é amar Deus sobre todas as coisas.

É por isso que eles naturalmente podem ter simpatias ou antipatias como todo mundo e precisam vencê-las pela virtude. Santa Teresinha, para citar um exemplo, narra em seus Manuscritos Autobiográficos que tinha uma natural aversão por determinada monja, e que foi preciso toda sua energia para — seguindo o “agere contra” recomendado por Santo Inácio de Loyola — vencer essa má tendência, tratando-a como se fosse a pessoa que mais queria.

         Não é pois de espantar que São Paulo, o grande Apóstolo dos gentios, tivesse também suas preferências. Uma delas era a predileção especial que nutria, entre todos os povos que evangelizou, pelos filipenses como prova a Epístola que lhes escreveu e os Atos dos Apóstolos.

         Ocorreu que, na sua segunda viagem apostólica, o incansável missionário, depois de ter confirmado na fé as igrejas por ele fundadas em sua primeira missão, se propunha a ir para a Bitínia com seus auxiliares, Silas e Timóteo. Contudo, estando na Galácia “o Espírito Santo lhes proibiu pregar a palavra na Ásia” como também na Bitínia (At 16, 6).

         Ainda inseguro sobre o que fazer, descendo para Troáde com Timóteo e Silas, “pela noite Paulo teve uma visão: Um varão macedônio pôs-se diante dele e, rogando-lhe dizia: Passa à Macedônia e ajuda-nos”. São Lucas, que se juntara aos missionários acrescenta: “Após sua visão procuramos partir logo para a Macedônia, seguros de que Deus nos chamava para os evangelizar” (At 16, 6-10).

         Foi então que se deu o momento histórico em que Paulo de Tarso e seus auxiliares puseram pela primeira vez o pé no continente europeu chegando a Filipos, “que é a primeira cidade desta parte da Macedônia, colônia romana, onde passamos alguns dias”. (At 16, 12). [ao lado e abaixo, fotos de ruínas da cidade].

         Filipos, primitivamente chamada Crenides, recebeu seu nome do rei Felipe da Macedônia, pai de Alexandre Magno. Ele a reedificou e embelezou por volta do ano 360 antes de Cristo. Distante 15 quilômetros do Mar Egeu, ficava na emblemática Via Egnatia, que ligava Roma à Ásia Menor. Era por isso considerada a “porta de entrada da Europa”, e estava no limite entre a região da Macedônia e da Trácia.

No tempo do Apóstolo, Filipos era já uma cidade importante. Contudo, dela não restam em nossos dias senão ruínas.

Chegar a um continente novo, a um país diferente e a uma cidade desconhecida para fazer apostolado é sempre uma aventura. Por onde começar?

Curiosamente eles se dirigiram para junto do rio “onde pensávamos estivesse o lugar da oração”. Lá havia algumas mulheres que conversavam. Uma delas era “certa mulher chamada Lídia, temente a Deus, purpureira, da cidade de Tiatira”. Mulher inteligente e empreendedora, “escutava atenta” o que Paulo dizia (At; 16.14-15).

Pelo que se supõe pelo contexto da narração, por vários dias São Paulo pregou as verdades do cristianismo a Lídia [quadro abaixo] e suas companheiras. Como consequência ela, uma vez convencida da verdade do que lhe era dito, se batizou “com toda sua casa”.

Como nada é dito nos Atos nem consta na tradição sobre seu possível marido ou filhos, ficamos sem saber se Santa Lídia era casada; ou se esse “toda sua casa” se refere a seus pais ou domésticos.

Uma vez batizada, Lídia “obrigou-nos” a se hospedarem em sua casa. (16, 14-15).

Santa Lídia não deveria ser pobre. Pois a púrpura era um dos mais caros pigmentos naturais da Antiguidade, preparada com tintas de vários moluscos. Sua cor, entre o azul e o vermelho, era usada pelos magistrados romanos, tornou-se a cor imperial usada pelos governantes do Império Bizantino e do Sacro Império Romano e, mais tarde, pelos bispos católicos romanos. Por isso, a profissão de purpureira deveria ser bastante rendosa e importante.

Pode-se supor também pelo que se seguiu, que em pouco tempo a pregação dos missionários produziu copiosos frutos.

São Lucas, um cronista de mão cheia, narra que um dia quando Paulo e seus auxiliares estavam indo à oração, “uma escrava que tinha espírito pitônico a qual, adivinhando, proporcionava aos amos grandes ganhos”, começou a ir atrás deles gritando: “Estes homens são servos do Deus Altíssimo, e vos anunciam o caminho da salvação”. Isso um dia, dois, três. Pelo que Paulo incomodado por se ver elogiado pelo espírito imundo o expulsou da mulher.

Ora, os amos da pitonisa vendo que tinham perdido sua fonte de renda, vingaram-se de Paulo e Silas agitando a cidade contra eles, acusando-os de perturbarem a paz pública e levantaram a população contra os dois. Eles foram então presos, açoitados e postos no calabouço.

À meia noite entretanto, enquanto os dois missionários louvavam a Deus, um grande terremoto abalou os fundamentos do cárcere abrindo todas as portas. O carcereiro, temendo que os presos tivessem fugido, quis se matar, mas foi impedido por Paulo. Movido então por uma graça de Deus, o carcereiro lhes perguntou: “Senhores, o que devo fazer para ser salvo?”. Instruído, se ele foi batizado com toda sua família.

Quando amanheceu os pretores mandaram pôr os presos em liberdade. Indignado São Paulo respondeu: “Depois de a nós, cidadãos romanos, nos açoitarem publicamente sem nos julgarem, e nos meterem no cárcere, agora em segredo querem nos lançar fora? Não será assim. Que venham eles e nos conduzam para fora”. Temerosos e com muitas desculpas os pretores os acompanharam para fora, e “rogaram-lhes se retirassem da cidade”.

         Pode-se inferir dos Atos dos Apóstolos que São Paulo, quando partiu, deixou São Lucas em Filipos confirmando os neo-cristãos, pois é nessa cidade que o evangelista cessa de usar a primeira pessoa do plural em sua narração, que só recomeçará ao descrever o fim da terceira viagem apostólica.

         Apesar de ter saído meio às pressas da cidade, Filipos se tornou a comunidade predileta de São Paulo como se vê na epístola que lhes escreveu com a ternura de um pai espiritual que abre o seu coração com os filhos queridos.

         Tudo indica que o Apóstolo escreveu essa epístola do seu primeiro cativeiro em Roma, e que o portador dela foi Epafrodito, que fora mandado pelos filipenses à Cidade Eterna para levar um auxílio a ele.

         Diz ele na Epístola: “Dou graças a meu Deus cada vez que me lembro de vós. Sempre e em todas as minhas orações, eu rogo por vós todos cheio de alegria, por causa de vosso interesse pelo Evangelho desde o primeiro dia até agora (Fl 1, 3-4). Quer dizer, “desde o primeiro dia” os filipenses ouviram com avidez o que lhes dizia Paulo. Pelo que ele se lembra deles cheio de alegria, sobretudo em suas orações. E reafirma: “De modo que, irmãos meus mui queridos e mui desejados, minha alegria e minha coroa, perseverai firmes no Senhor, caríssimos” (4, 1).

         São Paulo, como que querendo se justificar dessa sua “fraqueza”, acrescenta: “É bem justo que eu nutra estes sentimentos para com todos vós, pois vos trago dentro do coração […] Deus me é testemunha de quantas saudades eu tenho de vós todos no mais entranhado amor de Cristo Jesus” (Fl 1, 7-8).

Os filipenses retribuíam tão afetuosa consideração. Assim, quando eles tiveram notícia de que seu pai bem amado se encontrava preso por amor de Cristo, lhe enviaram como dissemos Epafrodito, um dos seus, para levar-lhe os seus presentes e assisti-lo no cárcere.

         E São Paulo, que jamais aceitara ajuda das outras igrejas fundadas por ele, fez uma exceção à de Filipos como relata em sua Epístola: “quando eu parti da Macedônia, nenhuma igreja senão a vossa me abriu uma conta de deve-haver. Porque, estando em Tessalônica, uma e duas vezes me enviastes com que atender à minha necessidade” (4, 15-16).

         Embora os filipenses se lembrem sempre de seu benfeitor, ele lhes recomenda: “Só cumpre vos porteis de maneira digna do Evangelho de Cristo para que, quer eu vá visitar-vos, quer fique ausente, ouça dizer de vós que estais firmes num só espírito, lutando unanimemente pela fé do Evangelho, sem vos deixardes intimidar por coisa alguma diante de vossos inimigos […] porque vos foi outorgado não somente crer em Cristo, mas também padecer por Ele, sustentando o mesmo combate que vistes em mim e agora de mim ouvis” (1, 27-30). Uma última exortação: “Quanto ao mais, irmãos, a tudo quanto há de verdadeiro, de nobre, de justo, de puro, de amável, de louvável, a tudo que seja virtude ou digno de louvor: a isso estai atentos. E praticai o que tendes aprendido e recebido, e tendes ouvido e visto em mim, e o Deus da paz será convosco” (4, 8-9).

         Isso deve ser para eles razão de alegria: “Alegrai-vos sempre no Senhor; e torno a dizê-lo: alegrai-vos. A vossa doçura se mostre a todos os homens […] e a paz de Deus, que sobrepuja todo o entendimento, guardará vossos corações e vossos pensamentos em Cristo Jesus” (4, 4-7).