
Santuário universal pelas almas do Purgatório
- André de Jesus da Silva
Entre as páginas luminosas da história da Igreja, certas obras, embora nascidas em pequenas aldeias, adquirem ressonância universal, como um clarão que se projeta até os confins do mundo. Assim é o Santuário de Nossa Senhora de Montligeon, na França, erguido pelo zelo de um sacerdote que, inflamado de amor a Deus e compaixão pelas almas padecentes, quis oferecer ao universo católico um foco de orações em favor das almas do Purgatório.
Purgatório: dogma muitas vezes “esquecido”

Antes de narrar a origem dessa obra, convém recordar a doutrina da Santa Igreja sobre o Purgatório, tantas vezes esquecida pelos católicos de hoje.
Ensina o Concílio de Trento que “há um Purgatório, e que as almas ali detidas são ajudadas pelos sufrágios dos fiéis, especialmente pelo sacrifício do altar” (Sess. XXV, Decretum de Purgatorio)[1]. A Sagrada Escritura já insinua esta verdade no célebre episódio de Judas Macabeu, que fez oferecer sacrifícios pelos soldados mortos em combate: “Santo e salutar pensamento este de orar pelos mortos. Eis porque ofereceu um sacrifício expiatório pelos defuntos, para que fossem livres dos seus pecados” (2Mc 12, 46)[2].
Os Santos Padres, como Santo Agostinho, recomendavam que se oferecesse a Missa pelos falecidos: “Não hesitemos em socorrer aqueles que partiram e em oferecer nossas orações por eles” (Sermão 172)[3].
Por que isso? Porque o Purgatório é lugar de purificação. As almas que morrem na graça de Deus, mas ainda com penas a expiar ou apegos a purgar, são ali retidas até que estejam dignas de entrar na visão beatífica no Céu. São salvas, mas sofrem intensamente. Não podem mais merecer, nem abreviar por si mesmas o tempo da expiação: apenas nós, da Igreja militante, podemos ajudá-las com orações, oferecendo esmolas e, sobretudo, o Santo Sacrifício da Missa.
O humilde pároco de la Chapelle-Montligeon

Esta doutrina consoladora inflamou o coração do Padre Paul-Joseph Buguet [foto], nascido em 25 de março de 1843 na pequena localidade de Bellavilliers, departamento de Orne, Normandia. Era filho de Jean-Michel Buguet, humilde fabricante de tamancos, e de Marguerite Bellanger, fiandeira de profissão. Já no dia seguinte ao nascimento recebeu a graça inestimável do Batismo, que marcaria para sempre sua alma. Cresceu no seio de uma família simples, acostumando-se desde cedo às privações materiais, mas também à fé robusta e uma piedade extraordinária, a exemplo de seus pais. Ordenado sacerdote em 1870, no mesmo ano em que rebentava a guerra franco-prussiana, experimentou, logo nos primórdios de seu ministério, a gravidade dos tempos e a urgência das realidades eternas.
No ano de 1876foi nomeado pároco da pequeníssima aldeia de La Chapelle-Montligeon, na Diocese de Séez.
A região era pobre e esquecida, e o padre, além de cuidar das almas, tinha de lutar contra a miséria material dos paroquianos. Mas no fundo de sua alma ardia uma preocupação ainda maior: o destino das almas após a morte. Ele mesmo havia perdido entes queridos de maneira trágica. Em 1876, três mortes dolorosíssimas marcaram-no profundamente: seu irmão Auguste, esmagado pela queda do sino da igreja de Mortagne-au-Perche, e suas duas sobrinhas que, consumidas pela dor, faleceram pouco depois. O jovem sacerdote interpretou tais provações como um chamado do Céu. Em suas anotações, deixou registrado: “Uma consequência a tirar do que acabo de meditar é a necessidade de aliviar as almas do Purgatório. Tenho tardado demasiado em realizar a Obra que havia projetado.”
Foi em meio a tais reflexões que nasceu nele a inspiração: fundar uma obra universal de sufrágios, dedicada às almas do Purgatório mais esquecidas, aquelas pelas quais ninguém reza.
Fundação da Obra de Montligeon

Leão XIII – Adolf Pirsch (1858–1929). Museu de Viena.
Em 1884, amadurecida pela oração e confirmada pelas duras provações de sua vida, nasceu finalmente a obra sonhada pelo Pe. Buguet: a Associação em sufrágio das Almas do Purgatório, entregue à especial proteção da Santíssima Virgem. Seu ideal, ao mesmo tempo simples e grandioso, consistia em criar uma imensa família espiritual, na qual vivos e falecidos fossem inscritos para participarem, de modo contínuo e perpétuo, das orações e sufrágios oferecidos em Montligeon. O ponto central dessa obra é o Santo Sacrifício da Missa, celebrado diariamente no santuário em favor de todas as almas inscritas, expressão concreta da caridade que une a Igreja militante à padecente.
A devoção conheceu rápido crescimento. Já em 4 de outubro de 1884, o bispo de Séez, Dom François-Marie Trégaro, aprovava oficialmente a fundação da “Obra Expiatória pela Libertação das Almas Abandonadas do Purgatório”. Com ardor missionário, o Pe. Buguet começou a percorrer as paróquias vizinhas do Perche (região normanda onde se encontra o santuário), e em seguida outras dioceses da França, pregando, organizando inscrições e inflamando os fiéis com esta causa tão nobre.
Aprovação da Igreja e expansão mundial
A Providência confirmou seus esforços. Em 1893, o Papa Leão XIII elevou a associação à dignidade de Arquiconfraria, e em 1895 concedeu-lhe o título singular de “Arquiconfraria Prima-Primária”, tornando-a a “obra-mãe” de todas as associações semelhantes no mundo inteiro. Entre 1895 e 1899, o Pe. Buguet multiplicou suas viagens, levando a obra para além das fronteiras francesas e alcançando renome internacional. Em Roma, foi erguido um secretariado sob a proteção do Cardeal Lucido Maria Parocchi. Nessa mesma época, passou a celebrar-se diariamente o Ofício dos Defuntos na Basílica de Santa Maria in Montesanto, na Piazza del Popolo, como extensão romana da obra de Montligeon.
Para dar maior difusão à sua iniciativa e manter viva a ligação com os associados, o Pe. Buguet lançou mão dos recursos da imprensa. Fundou uma tipografia em Montligeon, que imprimia boletins, folhetos e santinhos, difundidos por toda parte. Assim, unia seus dois ideais mais caros: o sufrágio das almas do Purgatório e a criação de trabalho digno para os operários de sua paróquia. Ambos, pela bênção de Deus, tomaram proporções que o modesto pároco jamais poderia ter previsto.
Logo se tornou evidente que a pequena igreja paroquial do século XVI já não comportava a multidão crescente de peregrinos que acorria a Montligeon. Diante dessa necessidade, em 1892 o Pe. Buguet decidiu empreender a construção de um templo muito maior e digno da missão universal confiada à obra. Obtida a aprovação de seu bispo, pôs-se com fé heroica à busca de recursos para financiar os trabalhos. Em 4 de junho de 1896, Dom Trégaro, bispo de Séez, lançou a primeira pedra da nova igreja, concebida em estilo neogótico. Não faltaram provações: dificuldades financeiras quase insuperáveis, incompreensões locais e até críticas de quem o julgava um visionário. Mas o sacerdote perseverou, sustentado por sua confiança filial na Virgem Santíssima. Finalmente, em 1º de junho de 1911, pôde-se celebrar a primeira Missa no majestoso edifício, que em 1913 seria reconhecido como sede oficial da Arquiconfraria Prima-Primária, a Obra Expiatória para a Libertação das Almas Abandonadas do Purgatório.

Nossa Senhora, “Libertadora e Porta do Céu”
O título com que Maria Santíssima é venerada em Montligeon exprime sua missão maternal: “Nossa Senhora Libertadora das Almas do Purgatório”, também chamada na inscrição do altar-mor da basílica: “Notre-Dame Libératrice et Porte du Ciel”(Nossa Senhora Libertadora e Porta do Céu).
A imagem que domina o santuário é profundamente simbólica. Representa a Virgem Maria descendo ao Purgatório, inclinada com ternura sobre as almas padecentes. Seu olhar é de compaixão, e de suas mãos parte o gesto maternal de livramento, retirando do fogo purificador os fiéis que já se encontram preparados para o encontro definitivo com Deus. Ao mesmo tempo, a imagem mostra Nossa Senhora conduzindo essas almas ao Céu, verdadeira “Porta” pela qual se ingressa na visão beatífica.
Não se trata de uma mera representação artística: é a expressão da doutrina católica sobre a mediação universal de Nossa Senhora, ensinada pelos Santos Padres e confirmada pelo Magistério. Se Jesus Cristo é o único Mediador necessário entre Deus e os homens (cf. 1Tm 2,5), Maria participa desta mediação de forma subordinada, mas real e eficaz, como Mãe do Redentor e dispensadora de todas as graças.
Já no século XII, São Bernardo de Claraval proclamava: “Recordemo-nos de Maria, invoquemos Maria. Que Ela jamais se afaste de nossos lábios, que jamais se afaste de nosso coração. E, para obtermos sua intercessão, não nos esqueçamos de imitar sua vida.”[4] Em Montligeon, essa lição de São Bernardo torna-se palpável: Maria Santíssima é invocada como medianeira que abrevia as penas do Purgatório, alcançando de seu Divino Filho misericórdia para os que ainda expiam.
Do mesmo modo, São Luís Maria Grignion de Montfort, no seu Tratado da Verdadeira Devoção à Santíssima Virgem, afirma que Nossa Senhora é o caminho mais seguro e curto que leva a Jesus, porque “Deus, tendo dado ao mundo Jesus por meio de Maria, não muda mais de conduta; é por Maria que quer formar os membros do Seu Corpo místico” (n. 29)[5]. Se isso vale para a vida terrena, quanto mais para a vida além da morte, quando as almas esperam ansiosamente a libertação do Purgatório a fim de irem para o Céu!
Em Montligeon, portanto, a devoção mariana ilumina o mistério do Purgatório com a luz da esperança. A justiça divina purifica, mas é Maria quem, como Mãe e Advogada, apresenta ao trono do Altíssimo as nossas orações, e obtém a libertação dos filhos que tanto ama.
Em tempos de materialismo e esquecimento dos Novíssimos do homem (Morte, Juízo, (Purgatório), Inferno, Céu), Montligeon ergue-se como uma voz que clama: “Lembrai-vos das almas do Purgatório!” Rezando por elas, obedecemos ao mandamento da caridade e, ao mesmo tempo, preparamos para nós mesmos advogados no Céu. Pois, como dizia Santo Ambrósio: “Se ajudarmos as almas, seremos ajudados quando chegar a nossa hora”[6].
Que o Brasil católico conheça e difunda esta devoção. E que Nossa Senhora de Montligeon, Mãe da Esperança, Libertadora e Porta do Céu, seja sempre nossa intercessora, para que um dia nos encontremos, purificados e na felicidade da eterna visão de Deus.
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Notas:
Referencias: Santuário de Montligeon: https://montligeon.org/
[1] Concílio de Trento (1545–1563), Sessão XXV, Decreto sobre o Purgatório.
2 2 Macabeus 12, 46.
3 Santo Agostinho, Sermão 172, 2.
4 São Bernardo de Claraval, Homilia II super Missus est, n. 17.
5 São Luís Maria Grignion de Montfort, Tratado da Verdadeira Devoção, n. 29.
6 Santo Ambrósio, De Viduis,
cap. IX, n. 55
[1]Concílio de Trento (1545–1563), Sessão XXV, Decreto sobre o Purgatório.
[2]2 Macabeus 12, 46.
[3]Santo Agostinho, Sermão 172, 2.
[4]São Bernardo de Claraval, Homilia II super Missus est, n. 17.
[5]São Luís Maria Grignion de Montfort, Tratado da Verdadeira Devoção, n. 29.
[6]Santo Ambrósio, De Viduis, cap. IX, n. 55