Rocamadour, símbolo de fé encravado na rocha

Rocamadour 

Pouco mais que uma aldeia, Rocamadour(1) surge como um sonho das neblinas do vale. Se o célebre Monte de São Miguel – le Mont St-Michel, diz-se na França – aparece como uma montanha sagrada apontando para as nuvens, Rocamadour brota das entranhas da terra e das próprias pedras em busca do céu. Não é sem razão que Rocamadour significa “o rochedo de Amadour”.

Mas, quem foi Amadour, aliás, Santo Amadour?

Segundo a tradição ou a legenda (pois os documentos são escassos), Amadour não foi outro senão Zaqueu, o publicano do Evangelho.(2) Se a antiga Gália, depois reino de França, tornou-se a filha primogênita da Igreja, não foi sem razão. Para o seu território migraram vários discípulos de Nosso Senhor Jesus Cristo, entre eles Lázaro, o ressuscitado, e suas irmãs Marta e Maria, a Madalena, os quais desembarcaram em Saintes-Maries-de-la-Mer, antigo porto perto de Marselha.

O evangelho de São Lucas é bastante claro: Zaqueu era rico, o que não o torna simpático aos demagogos da pobreza, tão em voga em nossos dias… Depois da paixão e morte de Nosso Senhor, ele teria servido a Nossa Senhora. E, aconselhado por Ela, tomado o destino de outros emigrantes da Terra Santa, indo buscar refúgio na Gália.

Uma legenda diz que Zaqueu teria-se casado com a Verônica, que enxugou a Sagrada Face de Jesus durante a Paixão. E que, após a morte da esposa, teria procurado a solidão para viver como eremita em alguma caverna a meia altura das paredes rochosas de um desfiladeiro, em cujo leito corre um pequeno riacho. Esse canyon rasga as colinas de um planalto árido e pedregoso — que os franceses chamam Causses — entre os rios Dordogne e Lot.

Sobre a vida de Zaqueu ou Amadour, entretanto, pouco se sabe, a não ser que viveu e morreu naquele lugar ermo, conforme no notícia que vinha de boca a ouvido desde tempos imemoriais. Sabia-se que o santo estava enterrado naquelas rochas, mas não se conhecia o lugar exato.

O corpo incorrupto e o culto a Nossa Senhora

Rocamadour
Imagem de Nossa Senhora de Rocamadour

No século XII, veio contudo à luz o primeiro documento sobre o assunto. O abade do Monte São Miguel, Robert de Torigny, relata numa crônica consagrada à peregrinação do rei da Inglaterra, Henrique II, o Plantageneta, que “no ano da Encarnação de 1166, um habitante do lugar, estando nos seus derradeiros momentos, mandou aos seus, sem dúvida inspirado por Deus, sepultar seu cadáver à entrada do oratório” (que existia no lugar onde hoje se encontra o santuário de Rocamadour). “Ao cavar a terra, prossegue o abade, encontrou-se o corpo bem inteiro (ou seja, incorrupto) de Amadour; ele foi colocado na igreja, junto do altar, e assim é mostrado aos peregrinos”.

Vê-se, pela crônica, que no século XII, quando o corpo foi encontrado, já havia um verdadeiro culto ao santo, que o povo ligou logo ao de Nossa Senhora, da qual ele foi fiel servidor. Com efeito, o culto à Virgem Negra(3) de Rocamadour vem de tempos imemoriais.

De qualquer modo, o certo é que naquele lugar insólito formou-se, durante a Idade Média, uma encantadora aldeia, que ainda em nossos dias testemunha a glória de Zaqueu ou Amadour.

Seu corpo, sabe-se de ciência certa, está incorrupto e nunca apodreceu”, recitavam os trovadores no século XIII. “Em pele e osso como Amadour”, diz um provérbio de Liège, que por vezes ainda se ouve em nossos dias.

O fato é que, 400 anos depois da sua descoberta, o corpo continuava intacto, como testemunha uma paroquiana falecida em 1632, que viu o corpo glorioso de santo Amadour “todo inteiro, em pele e osso, como no dia em que ele morreu”. Essa piedosa centenária também foi testemunha da tentativa frustrada dos protestantes huguenotes, que queriam fazer uma grande fogueira para queimar o corpo do santo. “Mas Deus não o permitiu”. Entretanto, eles fizeram em pedaços a urna de prata e roubaram o precioso tesouro.

No espírito das pessoas do povo, o fiel servidor de Maria Santíssima esperava assim o dia da ressurreição dos mortos. E se voltavam para a Virgem Negra, que realizava tantos milagres. Ela é apresentada como o Trono da Sabedoria encarnada, que é Nosso Senhor Jesus Cristo, que Ela tem sobre seus joelhos.

Um livro do santuário contém 126 relatos de milagres atribuídos a Nossa Senhora de Rocamadour, delicadamente ilustrados com desenhos representando as cenas de tais milagres.

Rocamadour
Cravada diretamente no rochedo, junto à entrada do santuário, vê-se a legendária espada de Roland, que o fiel par do Imperador Carlos Magno teria vindo oferecer a Nossa Senhora de Rocamadour

Abençoado e maravilhoso local de peregrinação

Rocamadour é fascinante sob vários pontos de vista. Poderíamos descrever as suas maravilhas, por exemplo do ponto de vista da sociedade orgânica. Mas o espaço nos põe limites. Restrinjamo-nos ao aspecto religioso, às peregrinações.

Rocamadour é uma fonte de graças. Por isso atraiu santos, reis e príncipes. E continua a atrair até hoje toda espécie de peregrinos, sobretudo os que estão cansados da banalidade do mundo moderno e procuram, fugindo do deserto das megalópoles modernas, um oásis que lhes sacie a sede de algo maravilhoso e espiritual.

Cravada diretamente no rochedo, junto à entrada do santuário, vê-se a legendária espada de Roland, que o fiel par do imperador Carlos Magno teria vindo oferecer a Nossa Senhora de Rocamadour. Por ali passaram peregrinos célebres: São Bernardo (por volta de 1147); São Domingos (1219); Cristóvão da Romanha, companheiro de São Francisco de Assis, Santo Engelberto (1216 e 1225); Santo Antonio de Pádua ou de Lisboa, que combateu os cátaros e fundou um convento em Brive-la-Gaillarde; Henrique II da Inglaterra (1159 e 1170); Filipe da Alsácia, conde de Flandres (1170); São Luís IX, rei de França, com seus três irmãos e sua mãe, Branca de Castela (1244); e outros soberanos, dos quais o último foi Luís XI, filho de Carlos VII (1443 e 1463).

Rocamadour e a batalha de Navas de Tolosa

Segundo uma crônica do monge Alberico, havia em Rocamadour um religioso sacristão ao qual Nossa Senhora apareceu em três sábados sucessivos, tendo na mão um estandarte dobrado. A Virgem ordenou-lhe que, de sua parte, levasse o estandarte ao “pequeno rei de Espanha”, que devia combater os sarracenos. O sacristão alegou o pouco de consideração ligada à sua pessoa: não dariam crédito às suas palavras, disse. Sua recusa foi o sinal de que morreria ao terceiro dia. O prior de Rocamadour recebeu o encargo de cumprir o mandato, ao qual estava ligada a ordem de não desfraldar o estandarte antes do dia do combate e, ainda nesse dia, antes de uma necessidade premente. O sacristão morreu depois de dar conhecimento dessa revelação

O prior executou fielmente o mandato e compareceu em pessoa ao campo de batalha. Esse estandarte levava a imagem de Nossa Senhora com o Menino Jesus nos braços. Ela tinha a seus pés o símbolo que o rei de Castela, chamado o “pequeno rei”, costumava ter no seu próprio estandarte.

O “pequeno rei” de Castela era Afonso VIII. Corria o ano de 1212. Os mouros ocupavam grande parte da Espanha e os reis de Castela, Navarra e Aragão se uniram para rechaçar o inimigo. Afonso VIII assumiu a direção das operações militares contra o emir Al-Nacir, perto de Las Navas de Tolosa.

Os muçulmanos eram cinco vezes mais numerosos. O combate se engaja, a vanguarda cristã é esmagada, a segunda linha desfeita, o resultado parece fatal… O estandarte de Rocamadour é então desfraldado e mostrado a todos os guerreiros. Os católicos enchem-se de coragem e põem em fuga o emir e as suas tropas.

A vitória cristã estava assegurada pela intervenção de Maria Santíssima!

Rocamadour
Estátua de Santa Joana d´Arc em Paris, confeccionada por Emmanuel Frémiet (1824-1910)

Rocamadour e a epopeia de Santa Joana d’Arc

Dois séculos mais tarde, a Europa cristã está em plena decadência, vítima do processo magistralmente descrito por Plinio Corrêa de Oliveira em sua obra-mestra Revolução e Contra-Revolução.(4) A Providência divina, sempre misericordiosa, envia sinais de advertência. A peste negra é um deles. A guerra dos Cem Anos, outro. Em consequência desta última, os ingleses ocupam boa parte do território francês a oeste e ao norte do país.

Em 1428, Carlos VII, rei sem coroa, sem exército, sem recursos e sobretudo sem virtude à altura da situação desesperadora, envia com sua esposa Maria de Anjou carta ao Papa Martinho V, pedindo-lhe que recorra a Nossa Senhora de Rocamadour. O Papa concede um jubileu extraordinário por um período de dez anos. Isso corresponde ao que na França se chama um “grande perdão”, pelos quais as pessoas que visitam determinado santuário obtêm indulgências e graças especiais, concedidas por Deus em virtude do “poder das chaves” que Jesus Cristo deu a São Pedro.

Como resultado, grandes multidões, inclusive de ingleses, afluíram ao santuário de Rocamadour. Em 1429, aparece uma donzela enviada pelo Rei dos Céus para expulsar os ingleses do Reino e fazer coroar Carlos VII rei da França. Este não acredita. Mas Joana d’Arc lhe diz coisas de sua vida íntima que ninguém poderia saber. Por fim, Carlos VII cede e começa a epopeia bem conhecida da reconquista do reino por Santa Joana d’Arc.

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         A situação atual do que foi a Cristandade e a da própria Igreja Católica é incomparavelmente mais grave do que a do século XIV. Hoje, o inimigo não só derrubou todas as muralhas e cativou todos os habitantes, mas conquistou até mesmo os que detêm os mais altos cargos de influência no plano temporal e mesmo elevados cargos na ordem eclesiástica, sem falar nos meios de comunicação, nas finanças e outros instrumentos de poder.

Supliquemos a Nossa Senhora de Rocamadour que nos socorra nesta circunstância a todos os que estamos desamparados, e em condições de tal inferioridade material que só com o auxílio celeste podemos triunfar sobre os inimigos da Igreja e da civilização cristã.

E-mail para o autor: catolicismo@terra.com.br
Fonte: Revista Catolicismo, nº 763, Julho/2014
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Notas:
  1. 1.     Pronuncie “rocamadur”, com acento na última sílaba.
  2. 2.     Veja quadro ao lado, com o texto do Evangelho de São Lucas.
  3. 3.     A expressão deve-se à cor negra da rústica estátua da Virgem Santíssima, venerada no santuário encravado na rocha. Alguns especialistas se perguntam se a estátua não seria pintada, como no tempo dos romanos, e se a sua aparência atual, bastante rústica, não se deve ao descoramento da camada de pintura que talvez tenha existido outrora. A explicação não passa, entretanto, de mera conjectura.
  4. 4.     Revolução e Contra-Revolução, Artpress Indústria Gráfica e Editora LTDA., São Paulo, 1998. Veja-se, particularmente, Parte I, Cap. III, A. Decadência da Idade Média.   

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Um milagre espiritual: a conversão de um príncipe

Rocamadour
Henrique II, da Inglaterra

É difícil para muitos, em nossos dias, compreender o temperamento apaixonado dos medievais, embora os desregramentos e pecados de hoje sejam em geral muito mais graves do que os de outrora.

Um caso interessante é o da família dos Plantagenetas, à qual pertencia Henrique II, duque de Anjou, que se tornou rei da Inglaterra. Era seu contemporâneo de Luís VII, Rei da França, o qual se casou, ainda muito jovem, com Aliénor ou Eleonora, filha de Guilherme de Poitiers, duque da Aquitânia.Com o falecimento prematuro de seu pai, Eleonora herdou o extenso e poderoso ducado da Aquitânia, cujas terras compreendiam quase todo o Sudoeste da França, do Poitou aos Pireneus.

Neta de Guilherme o Trovador, Eleonora era uma mulher brilhante, cheia de vida e de curiosidade, de espírito vivaz, inteligente e mundano. Luís VII, ao contrário, era muito recatado e piedoso, tendo recebido sua educação do sábio abade Suger, que ergueu a primeira catedral gótica do reino em Saint-Denis.

Consciencioso, o rei quis expiar suas culpas indo à segunda cruzada, pregada por São Bernardo em Vézelay. Eleonora quis ir também com seu séquito.No Oriente, a rainha encontrou-se com seu tio e ex-tutor, príncipe de Antioquia (que não era muito mais velho do que ela). Essas relações foram de tal sorte a causar escândalo. Ora, a corte francesa já não via com bons olhos a leigeireza de costumes meridionais da rainha. Com o caso de Antioquia, as relações do casal real se deterioraram ao extremo.

Luís VII quis repudiá-la, Suger tentou contemporizar. Finalmente, um concílio reunido em Beaugency decidiu pela nulidade do matrimônio. Dois meses depois, Eleonora casava-se com o turbulento Henrique II de Anjou, rei da Inglaterra, cognominado o Plantageneta. Com a herança de Eleonora, a monarquia inglesa tornava-se assim mais poderosa do que a francesa.

Henrique teve quatro filhos com Eleonora. Entretanto, as relações de família nunca foram boas. Em determinado momento, o rei encarcerou a rainha. Três de seus filhos se revoltaram e tomaram armas contra o pai. O rei procurava favorecer como herdeiro o seu favorito, João-Sem-Terra, prejudicando os demais. Um deles, Henrique Court-Martel, devastou então o vice-condado de Turenne e o Quercy, região onde se encontra Rocamadour. Para puni-lo, Henrique II cortou-lhe a pensão e passou suas terras para o seu irmão, o célebre Ricardo Coração de Leão. Como vingança, Court-Martel pilhou a abadia de Rocamadour e roubou o cofre com o tesouro de santo Amadour, constituído de pedras e jóias doadas por peregrinos, por vezes ilustres, que iam ao santuário.

Porém, quando o príncipe deixava a aldeia, os sinos começaram a tocar milagrosamente… Interpretando o ocorrido como uma advertência de Deus, Henrique Court-Martel fugiu para a cidade de Martel, não muito distante, onde chegou doente, arrependeu-se e confessou os seus crimes. Seu pai despachou um mensageiro concedendo-lhe o perdão, mas o príncipe, agonizante, deitado sobre um leito de cinzas e com uma enorme cruz sobre o peito, logo expirou, enviando um supremo adeus a sua mãe.

Sem dúvida, os medievais cometiam por vezes crimes bárbaros, mas a sua alma não estava fechada à graça de Deus como a de tantos homens de hoje.

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ZAQUEU, SEGUNDO SÃO LUCAS

Rocamadour
Retábulo representando o encontro de Jesus com Zaqueu

Tendo entrado em Jericó, Jesus atravessava a cidade. Vivia ali um homem rico, chamado Zaqueu, que era chefe de publicanos. Procurava ver Jesus e não podia por causa da multidão, por ser de pequena estatura. Correndo à frente, subiu a um sicômoro para O ver, porque Ele devia passar por ali. Quando chegou àquele local, Jesus levantou os olhos e disse-lhe:

“Zaqueu, desce depressa, pois tenho de ficar em tua casa”.

Ele desceu imediatamente e recebeu-O cheio de alegria. Ao verem aquilo, murmuravam todos entre si, dizendo que tinha ido hospedar-Se em casa de um pecador. Zaqueu, de pé, disse ao Senhor:

“Senhor, vou dar metade dos meus bens aos pobres e, se defraudei alguém, em qualquer coisa, devolver-lhe-ei quatro vezes mais”.

Jesus disse-lhe:

“Veio hoje a salvação a esta casa, por este ser também filho de Abraão; pois o Filho do Homem veio procurar e salvar o que estava perdido” (Lc 19, 1-10).