Esclarecendo apagões — em especial os não provocados pela ENEL

Em março de 2024 este artigo já havia sido postado neste site, mas por estar agora especialmente atual, ele é novamente reproduzido. O autor constata com tristeza que a imprensa continua ocultando fato notório: a ENEL é uma estatal. Estatal italiana. Com o mesmo inchamento, lentidões, compadrios, ineficiências, indicações políticas, de qualquer estatal brasileira.

  • Péricles Capanema

Apagões mentais. Temos apagões de várias ordens. Não lidamos apenas com os apagões devastadores na cidade de São Paulo. Lidamos ainda com apagões mentais, em boa parte causa próxima ou distante dos apagões de energia elétrica. Pretendo no presente texto jogar luz sobre um apagão mental. Há meses, se não há anos, a capital paulista sofre devastadora e contínua série de apagões e toda culpa dos enormes prejuízos despenca sobre a concessionária ENEL — ameaças de processos, de CPIs, de cassar a concessão, sei lá mais o quê. É justo? É equitativo? Em especial, o tiroteio atinge a todos os alvos? Não vulnera um deles pelo menos, de dimensões amazônicas, este a bem dizer nunca é citado. Vou citá-lo hoje, para completar o quadro. Não será a primeira vez. Para ser vero, sem efeitos perceptíveis, já fiz o mesmo numerosas vezes. Lá vou eu, de certo modo,“Vox clamantibus in deserto”.

Privatizações para inglês ver. Começo com algumas recordações necessárias e reitero o que venho martelando há anos: o processo de privatização brasileiro (e de desestatização) em larga medida é de mentirinha, para inglês ver. O caso da cidade de São Paulo é apenas um exemplo, dentro de um mar de situações semelhantes Brasil afora. Boa parte das empresas “privatizadas” no Brasil virou estatal estrangeira, comandada por governos estrangeiros, com presença marcante da China comunista. Em 2019, vale lembrar, o capital chinês nos segmentos de geração, transmissão e distribuição elétricas representava, respectivamente, 10%, 12% e 12% do total. A tendência é de participação crescente, o que levanta problemas evidentes de independência e soberania. Ninguém fala nisso. E nem reflete a respeito, pelo que parece. Há apagão mental aqui, que irá gerar escuridão em setores decisivos da economia. Mais ainda, do futuro pátrio. De passagem, privatização e desestatização no Brasil em larga medida pertencem ao vocabulário da novilíngua. Significam muitas vezes exatamente o contrário.

O caso da ENEL. A empresa concessionária ENEL tem capital predominante italiano. Mas quem manda nela não são proprietários privados. De fato, com 23,6% de seu capital, o governo italiano controla a ENEL. Mais claro, quem manda na ENEL é o governo italiano. A ENEL, em linguagem corrente, é uma estatal — em linguagem mais precisa, sociedade ou empresa de economia mista, como o Banco do Brasil ou a Petrobrás. No fim de 2023, acionistas minoritários da ENEL tentaram evitar que o governo indicasse o presidente do Conselho de Administração e ainda o presidente da empresa. Fracassaram. Sob protesto de tais acionistas, o governo colocou na presidência do Conselho de Administração o Sr. Paolo Scaroni, nascido em 1946, que já tinha sido presidente da empresa entre 2002 e 2014. O mesmo cidadão passou ainda pela presidência da ENI, gigante petrolífera em que o governo detém por volta de 30% da capital e indica seus dirigentes. Situação lá parecida com a nossa no Brasil, em que o governo controla o Conselho de Administração e a Diretoria Executiva da Petrobrás e do Banco do Brasil. Já se vê, entre as especialidades do Sr. Scaroni, ativo ainda em idade provecta, está a de se refestelar como alto executivo de estatais. O mercado não gostou, achou que prejudicaria os interesses da empresa. Uma das censuras emanadas do mercado italiano, a proximidade do Sr. Paolo Scaroni com a Rússia — cercania com Putin, no momento em que o autocrata russo agride não apenas a Ucrânia, mas à vera toda a Europa. Pior para o mercado, venceu o governo, (“quia nominor leo”), encarapitou-se Paolo, seguro, tranquilo, na presidência do Conselho. Com isso, são prejudicados os acionistas, baixa a qualidade dos serviços, sofrem os consumidores. Convém lembrar, a ENEL, estatal italiana, tem numerosas concessões Brasil afora. É côngruo, a bagunça lá repercute aqui, a empresa tem sido alvo de queixas contínuas dos clientes. Só no Estado de São Paulo atende a 7,8 milhões de consumidores. A ENEL entrou no Brasil no bojo do amplo programa de desestatização e de privatização, cuja meta era aumentar a eficiência, baixar custos e generalizar atendimento. Curto, visava enterrar o péssimo e caro das empresas estatais. Leitor, você já leu em algum lugar que a ENEL é uma estatal? Com os mesmos defeitos comuns às estatais, compadrio, ineficiência, inchamento de funcionários, favorecimentos, ingerências políticas. Para a ENEL, que atende o consumidor paulista, o determinante, nunca foi e nem poderia ser as conveniências deste consumidor. O determinante é o interesse do governo italiano. Um slogan atual para a cidade de São Paulo: — Privatização já.

O disparatado programa brasileiro de desestatização e privatização vivo como nunca. A imprensa continua divulgando que existe um amplo programa de desestatização e privatização, pelo menos nos Estados não governados pelo PT, pois esta agrupação tem enraizado ranço estatista. Está plantada no atraso, promove o retrocesso. O ranço, contudo, aparece, onde menos se esperaria, vem de atavismo duro de eliminar. Em São Paulo, governado por administração que afirma favorecer a livre iniciativa, muito recentemente foi leiloada a construção de nova linha férrea São Paulo-Campinas, 100 quilômetros de trajeto, que irá atender São Paulo, Jundiaí e Campinas, entre outras cidades. Há ainda outras atividades constantes do pacote entregue ao vencedor. Quem levou o leilão? Uma estatal chinesa (CCCR), ou seja, uma empresa dirigida pelo governo chinês (de outro modo, pelo Partido Comunista Chinês), associada a um grupo privado nacional. Não se sabe bem em que proporção um ou outro grupo dirigirão as operações, o que desperta preocupações. Mas, é claro, jamais prejudicarão interesses do Partido Comunista Chinês, que terá a última palavra sobre a indicação de cada alto executivo chinês, que dirigirá a construção e por trinta anos a concessão. Daqui a pouco, virá a privatização da SABESP, negócio gigantesco. Teremos privatização real? Seria ótimo, os consumidores agradecerão. Ou teremos privatização à brasileira, de mentirinha, negócio para inglês ver, de fato, entrega da estatal paulista a uma estatal de país estrangeiro, usualmente da China comunista. Seria péssimo, os consumidores sofrerão.

O caso da Refinaria Landulpho Alves (RLAM ou Mataripe). Outro exemplo. E recente. Em novembro de 2021, a Petrobrás vendeu a Refinaria Landulpho Alves, localizada na Bahia. A justificativa em tais casos sempre foi a mesma: é necessário privatizar, aumentaria a concorrência, o mercado teria mais fornecedores, subiria a produtividade e a eficiência; com isso, o consumidor seria mais bem atendido, teria oferta maior com preços melhores. Nada mais verdadeiro, a estatização sempre gerou pobreza, a livre iniciativa é fator de prosperidade. Contudo, três anos depois, março de 2024, a refinaria vendia gasolina com preço 6,4% mais caro que o oferecido pela Petrobrás. Pouco antes, em 21 de fevereiro de 2024, a revista Oeste informava que “a Petrobrásquer retomar o controle da refinaria de Mataripe(BA), privatizada em 2021durante o governo do ex-presidente Jair Bolsonaro”. Ou seja, há negociações para que Mataripe volte a pertencer à Petrobrás. Mas vamos a este caso [no Direito Penal se diria, à verdade real, a única que deve determinar o juízo], apenas mais um exemplo da “privatização” há décadas vigente em Pindorama que pune a atual geração e deixará pasma as gerações futuras. Quem comprou a Landulpho Alves? A RLAM foi comprada pelo fundo Mubadala (fundo soberano, isto é, propriedade 100% estatal) de Abu Dhabi, um dos emirados que fazem parte dos Emirados Árabes Unidos. Na nossa política de “privatização”, a Petrobrás, empresa de economia mista, com cerca de 37% de capital estatal, 63% privado, (a empresa tem controle estatal, pois o Estado detém a maioria das ações ordinárias), vendeu a segunda maior refinaria do Brasil para uma empresa 100% estatal. Antes, Mataripe era, digamos, 63% privada. Depois da “privatização”, passou a ser 100% estatal. Resultado típico do programa de privatização brasileiro. Pior, todo mundo, parece, acha e proclama que isto é programa de privatização. Privatização à brasileira, claro. Faça um google, um teste. Mais de 95% do que encontrar sobre o caso, por baixo, será sobre a privatização de Mataripe (a refinaria Randulpho Alves). Convém lembrar, quem passou a mandar na Mataripe foi Abu Dhabi, parte dos Emirados Árabes Unidos, filiados à OPEP, cartel cuja função essencial é coordenar a produção do óleo cru para que o preço do barril de petróleo não caia. De outro modo, o governo dos Emirados Árabes Unidos não tem o menor interesse em que a gasolina no Brasil seja barata. Pode-se dizer sem problemas o contrário: via de regra, quanto mais cara nossa gasolina estiver, melhor para a OPEP, tal situação sustentará o preço do óleo cru no mercado mundial. De outro modo, é fantasia da mais rasa imaginar que a Mataripe nas mãos do governo do Abu Dhabi (é o fato, pertence ao Abu Dhabi) procuraria baixar o preço da gasolina (e outros produtos) por ela fabricados.

Fim dos apagões mentais. O público parece acreditar, temos entre nós efetivo programa de privatização. A imprensa, na grossa maioria dos casos, quando informa, falseia o quadro ou desinforma toscamente. Em particular, falta um elo indispensável, que ligue a presente situação acima apenas esboçada com problemas gravíssimos, de momento mais potenciais que reais, relacionados à soberania e à independência nacionais. Nas fímbrias do horizonte, por etapas compassadas, debuxa-se situação de protetorado efetivo, ainda que disfarçado ou inconfessado. Em resumo, queremos já o fim dos apagões, em especial na capital paulista. Mas com eles, talvez mais fundamentais, também a extinção dos apagões mentais.