Pe. David Francisquini
Fonte: Revista Catolicismo, Nº 886, outubro/2024
Pergunta — Fiquei chocada com a horrível cerimônia de inauguração dos Jogos Olímpicos em Paris, mas em alguns sites encontrei gente dizendo que a paródia da Última Ceia não foi uma blasfêmia, mas apenas uma expressão artística. O senhor poderia explicar o que é blasfêmia? Agradeceria se também pudesse aconselhar como um bom católico deve reagir diante de uma blasfêmia.
Resposta — Os dicionários definem blasfêmia com duas acepções principais: como uma palavra ofensiva à divindade ou à religião, ou então, num sentido mais amplo, como uma palavra ou afirmação que insulta ou ofende alguém ou algo digno de respeito.
Em português, o verbo blasfemar vem do latim blasphemare, ele próprio do grego blasphemein, composto por blapto, “eu danifico” e phaino, “torno visível”. Literalmente, blasfemar significa, portanto, maltratar (danificar) a visibilidade (a imagem), subentendido que se trata de Deus. Ou ainda, “prejudicar a manifestação de Deus (sua visibilidade)”, isto é, prejudicar a honra de Deus, em pensamento, em palavra ou em ação. Como é sabido, a língua original do Novo Testamento é o grego, e é nesse sentido que é empregado nas epístolas e nos Atos dos Apóstolos.
A versão hebraica do Antigo Testamento usa a palavra gidduf, que se traduz como “reprovação”. Trata-se, portanto, literalmente, de ter o atrevimento de afrontar a Deus, ousando dirigir-se a Ele com repreensões violentas. Na Bíblia, a noção de giddouf visa qualquer ataque arrogante à dignidade de Deus ou à santidade do seu Nome, uma vez que, para os judeus, na ausência de uma imagem, é o seu Nome inefável que O representa.
Pecado contra o segundo mandamento do Decálogo
Embora etimologicamente a palavra blasfêmia possa aplicar-se a um atentado à honra devida a uma criatura, em sua acepção estrita é usada apenas no último sentido, como já o fez notar Santo Agostinho. Por isso, foi definido por Francisco Suárez, o famoso teólogo jesuíta da Contra-Reforma, como “qualquer palavra de maldição, reprovação ou injúria pronunciada contra Deus” (De Relig., tract. iii, lib. I, cap. iv, n. 1).
Deve-se notar que, embora na acepção de Suárez a blasfêmia seja definida como uma palavra, pois normalmente é assim que se comete esse pecado, ela pode ser perpetrada também por pensamento ou ato. Porém, sendo principalmente um pecado da língua, é vista como diretamente oposta ao ato religioso de louvar a Deus.
Igualmente, é preciso sublinhar que, embora o mais das vezes o objeto da blasfêmia seja Deus, ela inclui os pensamentos, palavras ou gestos injuriosos para com os santos ou as coisas sagradas, por causa da relação que eles mantêm com Deus e seu serviço.
Trata-se de um dos pecados contra o segundo mandamento do Decálogo: “Não invocarás em vão o nome do Senhor teu Deus” (Ex 20, 7). No seu aspecto positivo, esse mandamento obriga o fiel a dar testemunho do nome de Deus, confessando a sua fé sem ceder ao medo, pregando o nome de Nosso Senhor Jesus Cristo com adoração e respeito (CIC, par. 2145) e respeitando as promessas feitas a outrem, em nome de Deus (CIC par. 2147). No seu aspecto negativo, ele proíbe “o abuso do nome de Deus, isto é, todo o uso inconveniente do nome de Deus, de Jesus Cristo, da Virgem Maria e de todos os santos” (CIC par. 2146).
O maior pecado contra a virtude da religião
Ora, uma das formas mais graves de abusar do nome de Deus, segundo o mesmo Catecismo da Igreja Católica, é a blasfêmia, que se opõe diretamente ao segundo mandamento: “Consiste em proferir contra Deus — interior ou exteriormente — palavras de ódio, de censura, de desafio; dizer mal de Deus; faltar-lhe ao respeito nas conversas; abusar do nome d’Ele. São Tiago reprova aqueles ‘que blasfemam o bom nome [de Jesus] que sobre eles foi invocado’ (Tg 2, 7). A proibição da blasfêmia estende-se às palavras contra a Igreja de Cristo, contra os santos, contra as coisas sagradas.” (par. 2148).
Segundo os moralistas, a blasfêmia é em si mesma pecado grave, sem que seja necessária a intenção expressa de atentar contra a honra de Deus. Basta que a pessoa esteja ciente do significado de suas palavras ou atos. Porém, os palavrões que, por cólera ou irreflexão, invocam o nome de Deus sem intenção de blasfêmia, se bem sejam uma falta de respeito para com Ele, são em si mesmas um pecado venial, a menos que a cólera seja dirigida ao próprio Deus ou que as palavras ou gestos constituam um grave escândalo para terceiros.
A malícia da blasfêmia resulta, de um lado, do fato de ser o maior pecado que se pode cometer contra a virtude da religião, pela qual rendemos a Deus a honra devida a Ele como nosso primeiro começo e último fim. De outro lado, na medida em que pela blasfêmia atribuímos a Deus o que não Lhe pertence, ou negamos a Ele o que é Seu, pode às vezes ser um pecado contra a fé (Santo Tomás de Aquino, Summa II–II, Q. xiii, art. I).
O blasfemador provoca a justa ira de Deus
Mais ainda, a seriedade de uma afronta é proporcional à dignidade da pessoa a quem é dirigida. Como na blasfêmia o insulto é dirigido à majestade infinita de Deus, o grau de sua malícia se torna evidente.
A gravidade da blasfêmia é tal que, na Antiga Lei, o blasfemador era punido com a morte por lapidação (Lev. 24, 14-16). Ao ouvir blasfêmia, os judeus costumavam, em repúdio ao crime, rasgar suas roupas (IV Reis, 18, 37; 19, 1), como fez Caifás ao acusar Jesus de ter blasfemado (Mt 26, 65). Até os pagãos condenavam severamente a blasfêmia. Em Atenas, Alcibíades foi obrigado a sofrer o confisco de seus bens por ridicularizar os ritos de Ceres e Prosérpina.
Também entre os antigos romanos a blasfêmia era punível, embora não com a morte. Depois da cristianização do Império, encontramos na época de Justiniano decretos mais severos contra esse pecado. Em uma constituição de 538 d.C., o povo é chamado a se abster da blasfêmia, que provoca a ira de Deus. O prefeito da cidade é ordenado a apreender todos aqueles que persistirem em sua ofensa após essa advertência e matá-los, para que a cidade e o império não sofram por causa de sua impiedade (Auth. Col., Tit. vii, 7 de novembro).
Entre os visigodos, aquele que blasfemasse o nome de Cristo ou expressasse desprezo pela Trindade, tinha sua cabeça tosquiada, era submetido a 100 açoites e sofria prisão perpétua em correntes (Ll. Wisigoth., lib. XII, tit. iii, 1. 2). Entre os francos, de acordo com uma lei promulgada na Dieta de Aquisgrão, em 818 d.C., esse pecado era uma ofensa capital.
Até o Código Penal brasileiro condena a blasfêmia
A lei canônica medieval suavizou as penalidades. Por um decreto do século XIII, um condenado por blasfêmia era obrigado a ficar na porta da igreja durante as solenidades da missa por sete domingos, e no último, despojado da capa e dos sapatos, deveria aparecer com uma corda em volta do pescoço. Obrigações de jejum e esmola eram igualmente impostas. Em sua Constituição “Cum primum apostolatus” (§ 10), São Pio V reiterou as penalidades. O leigo considerado culpado de blasfêmia era multado, o valor era aumentado na segunda infração, e na terceira vez o infrator era enviado para o exílio ou para as galés.
Nas legislações modernas aboliu-se o delito de blasfêmia, mas em muitas delas ficou o delito de “ultraje por motivo de crença religiosa” ou similares. A mudança é muito indicativa da passagem de uma sociedade teocêntrica e cristã, em cuja legislação era punido o fato de ofender a Deus, para uma sociedade ateia que põe no centro o homem, protegendo suas crenças — quaisquer que sejam — e punindo a ofensa feita às suas convicções religiosas ou ainda a perturbação da paz pública que ela acarreta.
No Brasil, o artigo 208° do Código Penal pune quem “escarnecer de alguém publicamente, por motivo de crença ou função religiosa; impedir ou perturbar cerimônia ou prática de culto religioso; vilipendiar publicamente ato ou objeto de culto religioso”.
Foi com base nesse artigo que, em 1995, um pastor da Igreja Universal do Reino de Deus foi condenado por ter insultado e chutado uma imagem da Nossa Senhora da Aparecida num programa de televisão. Mas essa proteção é muito fraca, porque, apesar desse artigo do Código Penal, o STF desconsiderou os vários processos e providências cautelares movidos contra um programa blasfemo produzido pela produtora de vídeos de comédia Porta dos Fundos, difundido no Natal de 2019 pela cadeia de streaming Netflix.
Jesus afrontado e ridicularizado na encenação da Última Ceia
A paródia da Última Ceia, apresentada na cerimônia de inauguração dos Jogos Olímpicos de Paris com a cumplicidade das autoridades francesas e do Comitê organizador dos jogos, foi uma proclamação de desprezo ilimitado para com o Homem-Deus. A atriz que fazia o papel de Jesus era uma lésbica grosseira, e os que representavam os Apóstolos eram transsexuais disfarçados de drag queens com posturas obscenas.
É quase impossível imaginar uma blasfêmia que ridicularizasse ainda mais um dos maiores atos de amor do nosso divino Redentor pela humanidade, pois foi na Última Ceia que Ele instituiu o sacerdócio, a perpetuação do sacrifício da Cruz na Santa Missa, e a Sagrada Eucaristia como alimento quotidiano para nossas almas.
Daí o choque dos cristãos do mundo inteiro, acrescido do brado de indignação que se elevou de todos os corações verdadeiramente católicos e que não encontrou eco da parte dos responsáveis, os quais se escudaram atrás da neutralidade do Estado e da liberdade artística dos que conceberam o espetáculo blasfemo.
Cumpre notar, de passagem, que a pretensa neutralidade religiosa do Estado é uma grande mentira, pois a proteção das crenças dos cidadãos só funciona num sentido: ai daqueles que se atrevam a zombar das “drag queens” ou dos homossexuais ou das lésbicas, dos transsexuais ou das chamadas “minorias visíveis”! A “blasfêmia” contra eles é proibida e severamente punida. Porém, a imensa maioria da população fica excluída do benefício da “inclusão” de que gozam aqueles que promovem comportamentos imorais e fazem ofensas gratuitas a Deus.
Reparar a honra de Cristo e ajudar a salvação do próximo
Uma palavra final sobre a reparação que essa blasfêmia — vista por bilhões de pessoas em suas TVs, inclusive crianças — deve suscitar entre os fiéis.
Segundo a doutrina católica, um ato de reparação é uma oração, um ato de devoção ou um sacrifício oferecido a Deus com a intenção de expiar os pecados próprios ou de outros. Na encíclica Misserentissimus Redemptor, sobre a expiação devida ao Sagrado Coração de Jesus, o Papa Pio XI dedica uma seção “ao dever de tributar ao Sacratíssimo Coração de Jesus aquela satisfação honesta que se chama reparação”. Diz ele que a resposta de amor da criatura ao amor do Criador impõe espontaneamente o dever “de compensar as injúrias de algum modo proferidas ao amor incriado, se esse amor foi desdenhado com esquecimentos e com ultrajes através de ofensas”.
Trata-se de um dever de justiça, “enquanto expiação da ofensa feita a Deus por nossas culpas, e enquanto a reintegração, pela penitência, da ordem violada”. Mas é também um dever de amor, “enquanto podemos padecer com Cristo ‘paciente e saturado de opróbrio’, e, em nossa pobreza, oferecer-lhe algum consolo”.
Por sermos todos pecadores, acrescenta ele, não basta fazer atos de adoração, de ação de graças e de petição. Também é necessário “satisfazer a Deus, Juiz justíssimo, ‘devido aos nossos inúmeros pecados, ofensas e negligências’”, para que não aconteça “que a santidade da divina justiça rechace nossa indignidade imprudente, e rejeite nossa oferenda”.
É certo que a Redenção de Jesus Cristo superabundantemente “perdoou nossos pecados” (Col 2,13). Porém, a divina Sabedoria dispôs que devemos completar em nossa carne o que falta à Paixão de Cristo em seu Corpo que é a Igreja (Col 1,24). Por isso, às orações e satisfações que Cristo ofereceu a Deus em nome dos pecadores, podemos e devemos acrescentar também as nossas, reconhecendo “que toda a força da expiação vem unicamente do cruento sacrifício de Cristo, que de modo incruento se renova sem interrupção em nossos altares”, ensina Pio XI.
E insiste em que todo o rebanho cristão “deve oferecer por si e por todo o gênero humano sacrifício pelos pecados”, concluindo que “quanto mais os fiéis meditarem tudo isso piamente, não poderão deixar de sentir, incendiados de amor por Cristo afligido, o desejo ardente de expiar as suas culpas e as dos outros; de reparar a honra de Cristo, de ajudar na salvação eterna das almas”.
Alguns conselhos de atos de reparação
Quase um século atrás, quando os costumes ainda não estavam tão corrompidos como hoje e era impensável haver atos públicos de blasfêmia como os que se veem agora, Pio XI considerava que “a necessidade desta expiação e reparação, não deixará de ser vista por quem olhe e contemple este mundo, como nós dissemos, ‘que está sob poder do mal’” e, no meio do qual, “de todas as partes sobe a nós o clamor dos povos que gemem, cujos príncipes ou governantes se congregaram e conspiraram unidos contra o Senhor e Sua Igreja”.
Ainda mais triste, dizia ele, é o fato de que “entre os mesmos fiéis lavados no batismo com o sangue do Cordeiro Imaculado e enriquecidos com a graça, tenha tantos homens, de toda a ordem ou classe, com incrível ignorância das coisas divinas, infectados por falsas doutrinas, vivem vida cheia vícios, longe da casa do Pai”.
Em particular, ele lamentava “o esquecimento deplorável da modéstia cristã na vida e principalmente no vestido da mulher; a cobiça desenfreada das coisas perecíveis, o desejo desproporcional das honrarias mundanas; a difamação da autoridade legítima e, finalmente, o desprezo da palavra de Deus, com a qual a fé é destruída ou se põe a borde da ruína”.
Se esse era o diagnóstico de Pio XI nos idos de 1928, qual seria sua avaliação do que vemos hoje? Surge naturalmente a segunda pergunta que me foi feita: como expiar por esse oceano de ofensas feitas à Santíssima Trindade?
A melhor expiação pelas ofensas a Deus é receber — sempre em estado de graça — a Sagrada Comunhão com piedade e, na ação de graças, deter-se especialmente no ato de reparação. Especialmente na Primeira Sexta-Feira e no Primeiro Sábado do mês, conforme os pedidos feitos pelo Sagrado Coração de Jesus a Santa Margarida Maria e por Nossa Senhora aos pastorzinhos de Fátima.
Igualmente recomendável é fazer um tempo de adoração diante do Santíssimo Sacramento, ou não podendo ir a uma igreja, rezar em casa o terço, meditando nos mistérios e oferecendo ao Padre Eterno os atos de amor, de obediência e de expiação que o Filho Lhe ofereceu ao longo de sua vida.
Também é possível, sem prejudicar o cumprimento dos deveres de estado, fazer alguns sacrifícios voluntários, como privar-se de alguns alimentos ou de algumas comodidades, com a intenção de reparar alguma ofensa a Deus particularmente chocante.
O valor desses atos de piedade aumentará muito se eles forem feitos com grande zelo, como alguém que rasga, não as vestiduras como os judeus da Antiga Lei, mas a própria alma. Diante das blasfêmias que são cometidas hoje, convém rasgar a alma pela dor e, quando apropriado, também pela santa cólera de que nos deu o exemplo o divino Mestre na expulsão dos mercadores do Templo.
Peçamos a Ele, pela intercessão do Imaculado Coração de Maria, uma fagulha de seu zelo infinito e um pouco da compaixão de sua Mãe Santíssima. Isso será mais do que suficiente para fazer de todos nós tochas ardentes de reparação pelos nossos pecados e os da humanidade e incenso de agradável odor pela conversão dos pecadores.