Malhando em ferro frio

  • Péricles Capanema

Voz que clama no deserto. Pensei em outros títulos: por exemplo, perdendo tempo ou voz que clama no deserto. Claro, emprego “voz que clama no deserto” no sentido moderno, falar debalde, gritar para quem não quer escutar, argumentar inutilmente. É que escritos meus a respeito podem semelhar realejo, tocariam ramerrão enfadonho já há uns dez anos. Resultados? Nulos, ou quase tanto, é o que aparenta. De passagem, já se vê, o significado da expressão passa longe do que ensinam os exegetas sobre o texto de Isaías, que ecoou nos Evangelhos. Encarando a mesma matéria sob outro ângulo, imaginei ainda “escapismo” por título. Seria aviso. Fiquei, por fim, no que acima encima o texto.

A necessária repetição. Resultados a bem dizer nulos? Salta incoercível a pergunta: para que continuar na trilha já bem batida? Valerá a pena? Adianta, convicção minha. Não importa o clamor sem eco aparente, o certo é prosseguir — e assim progredir; agir diferente é retrocesso. Ainda que poucos a ele agora deem ouvidos, a semente está colocada debaixo da terra, tem condições de frutificar, e dessa forma poderia ser obstáculo a tragédia grave, lesiva à independência e prosperidade nacionais, que assoma no horizonte.

Rejeição pelo oxigênio e atração pelo tóxico. Em duas palavras, dela tratarei abaixo, temos o Brasil se distanciando de área de influência de linhas gerais saudáveis e se precipitando em outra intensamente tóxica. Perspectiva apocalíptica, persuasão de anos. Sob o título “voz que clama no deserto”, postei dois artigos, um em 19 de dezembro de 2017, outro em 22 de janeiro de 2019. E ainda quase dois anos antes, “Clamando no deserto”, 18 de fevereiro de 2016, que remetia ao anterior “O Brasil servo”, de 10 de janeiro de 2016, mais de seis anos atrás. Avisos.

O Brasil servo. Aliás, é para este ignominioso estado, a servidão, normalmente processo de décadas, que desgraçadamente vamos sendo arrastados pelo menos desde o governo FHC. Bastaria recordar o fortalecimento rápido dos laços comerciais com a China comunista (com a inevitável interdependência e dependência daí resultantes), levada adiante com concomitante subestima da necessidade premente de, pelo menos, ao mesmo tempo, revigorar relações de igual natureza com Estados Unidos, União Europeia, Japão, Austrália. De momento, o Brasil, em especial seus setores produtivos, pensa duas vezes antes de tomar qualquer posição que possa desagradar a China. O impacto econômico interno poderia ser enorme, imediato e desastroso. Tais ponderações são compreensíveis, lógicas, limitantes; mal direcionadas, têm potencial perigoso. De outro modo, tal impulso, se ganhar velocidade, situação claramente concebível, conjugado a outros fatores, que também pesarão mais ao longo dos anos, farão o Brasil reagir à maneira de protetorado (inconfessado, talvez, mas real) possivelmente da China, quem sabe igualmente da Rússia —, caso o rumo, felizmente ainda tateante não for energicamente interrompido, minha obstinada esperança. Concluo o parágrafo puxando Nelson Rodrigues para minha sardinha: “O que é escrito ou falado uma única vez permanece rigorosamente inédito”. E ainda recordando Napoleão Bonaparte: “A repetição é a mais forte das figuras da retórica”.

Entre nós, gigante estatal de país comunista é empresa privada. Embuste deste naipe só tem vida no Brasil. Enumero a seguir outro fator de dependência. O Estadão de 10 de março de 2022, caderno Negócios, estampa a notícia “Chinesa CTG vai instalar eletropostos entre SP e MS”, texto de Cleide Silva. Começa assim: “Segunda maior geradora privada do País, a China Three Gorges (CTG), que hoje tem investimentos em hidrelétricas e parques eólicos, vai expandir seus negócios”. Informa que a companhia irá instalar 18 pontos de recarga elétrica em trajeto de 1,8 mil quilômetros que liga São Paulo a Mato Grosso do Sul. Explica ainda, a gigantesca firma chinesa (CTG) chegou ao país em 2013 e hoje tem investimentos em 17 hidrelétricas (das quais opera 14) e é sócia em 14 parques eólicos. Entrará igualmente no ramo da energia solar. A propósito, o Brasil tem hoje 1.250 postos de recarga e aproximadamente 80 mil veículos movidos a energia elétrica, mercado em rapidíssima expansão. A CTG atua em 47 países, o Brasil é o mais importante mercado para o grupo estatal fora da China. E o que aqui relato faz parte de quadro maior, porcentagem grande da infraestrutura brasileira caiu nas mãos de estatais estrangeiras, em especial da China. A situação pode piorar. É ameaça séria, mesmo que de momento latente, à soberania nacional.

Logros empilhados. País de engazopados. Onde malho em ferro frio? Ou clamo no deserto? Está claro na primeira frase da notícia: “Segunda maior geradora privada no País”. Geradora privada, permitam-me, é mentira repetida há anos pela imprensa. Não é geradora privada, é estatal chinesa. Tal patranha a propalam repetida e continuadamente os meios de divulgação. Dir-se-ia, no particular, o brasileiro não tem direito à verdade — contudo, óbvio ululante. Aventar o assunto é, tudo o indica, malhar em ferro frio. Matéria conexa, silêncio preocupante sobre a provável nova configuração das zonas de influência. Tratar do caso, igualmente, malhar em ferro frio.

Descaso suicida. Este é o clima psicológico — desleixo, imprevidência e indiferença com temas centrais ao bem comum — que cria o caldo de cultura propício para um país decair da condição de soberano para a de protetorado. Um dos componentes de tal atmosfera é total desatenção para a entrega parcial, mas altamente significativa, da infraestrutura nacional a empresas estatais de países comunistas. A revista “Exame” (11-10-16), pertencente a grupo diverso do controlador do Estadão, anunciou: “Em apenas três anos, a elétrica China Three Gorges Corporation (CTG) se transformou na maior geradora privada do Brasil. O último lance para a conquista da posição foi anunciado na segunda-feira, 10, com a compra dos ativos brasileiros da americana Duke Energy, em operação no País desde 1999, quando o setor elétrico estava sendo privatizado.” A Duke Energy, empresa privada norte-americana, foi comprada pela CTG, estatal chinesa — providência característica e reveladora do programa brasileiro de desestatização e privatização. Em suma, a direção anterior, um grupo de acionistas privados, foi substituída por burocratas a mando do Partido Comunista Chinês. Autêntica privatização à brasileira.

Escapismo. Relaciono agora a matéria com a atualidade mundial. É normal, louvável, indispensável mesmo que, a propósito da agressão russa à Ucrânia, os olhares se voltem para a possibilidade da 3ª Guerra Mundial. Entre muitos males dantescos, poderia ser nuclear, acarretar morte de milhões, talvez bilhões de pessoas, representar o fim da era histórica em que nos encontramos. Contudo, postas as informações que me chegam, não é o mais provável. Vislumbram-se pistas de acomodação e acordo. O que, de momento, parece mais provável e está sendo colocado em segundo plano, pelo menos no material que conheço? Enfraquecida e mais isolada por causa da investida criminosa na Ucrânia, a Rússia está se afastando ainda mais da Europa e dos Estados Unidos e se aproximando — aumento da dependência — da China. O antigo Império do Meio joga parado, fortalece seu cacife e seu jogo. Cada vez mais se coloca em condição de grande “player”. Em tais circunstâncias, constitui escapismo não ficar o olhar em fatores de aumento e consolidação da área de influência chinesa. Ou sinorrussa, para o caso, a mesma coisa.

(1) O sentimento isolacionista nos Estados Unidos. Está forte? Declinou? Segundo pesquisa do USSC (United StatesStudies Centre), dezembro de 2021, o sentimento isolacionista cresceu em relação à pesquisa anterior entre eleitores democratas e republicanos. Não é boa notícia. Pois da noção viva no público de lá da responsabilidade natural que a Providência e a História colocaram nos ombros dos Estados Unidos vai depender, provavelmente de forma decisiva, as posições dos políticos no Executivo e no Legislativo, o que condicionará a efetividade da reação do Ocidente. Em consequência, a amplitude e a eficácia da zona de influência dos Estados Unidos (aqui incluo, entre outros, União Europeia, Japão, Coreia do Sul, Austrália, Canadá).

(2) América Latina desliza. Há uma nova Guerra Fria em formação e, compete-nos em especial perceber que a América Latina emite fortes sintomas de deslize trágico rumo à zona de influência chinesa. O distanciamento em relação aos Estados Unidos e à União Europeia de vários de seus países no caso da Ucrânia, a mais das sequelas, aponta rumos. Sem falar (3) na entrega de setores importantes da infraestrutura (o problema não é só brasileiro) para estatais chinesas, de outro modo, para a direção política do governo da China comunista.

Evasão. Não parece saudável apontar a gravíssima ameaça de conflito maior, mas permanecer desatento para o crescimento de perigo mais provável e mais próximo, o escorregão progressivo da América Latina (e aqui incluo o Brasil) rumo à China. Ampliemos o quadro, existe perigo batendo à porta. Malhar sempre, mesmo que seja (ou pareça ser) em ferro frio.