SÃO JUSTINO, MÁRTIR

Estátua de São Justino na Catedral de Milão

Um dos mais importantes filósofos-apologistas gregos da primitiva Igreja, seus escritos representam um dos primeiros encontros de caráter prático da revelação cristã com a filosofia grega, e lançaram as bases para uma teologia da história. Sua festividade é celebrada no dia 1º de junho.

  • Plinio Maria Solimeo

Entre os Padres da Igreja do século II, São Justino é o mais conhecido, por causa dos documentos autênticos que dele temos. Além das Atas de seu martírio, que são dignas de todo crédito, em suas duas Apologias e no seu Diálogo ele fornece, como veremos, muitos dados pessoais um tanto idealizados e mesclados com poesia.

         Filho de Priscus, Justino nasceu por volta do ano 100 em Flávia Neópolis (hoje Nablus), na Samaria. Localizada cerca de dois quilômetros da cidade bíblica de Siquém, sua cidade foi fundada pelos romanos no ano 72. O que faz supor que sua família fosse das primeiras que nela se estabeleceram.

Ao que tudo indica, sua família também era pagã, como ocorria com a maioria de seus contemporâneos. E Justino seria um samaritano criado na cultura grega, embora vivendo no ambiente judaico da Palestina.

À procura de Deus

         No começo de seu Diálogo com o judeu Trifão — no qual narra suas disputas em Éfeso com um rabino, mostrando como Jesus cumpriu em vida e na morte a Lei e os anúncios dos Profetas —, ele afirma que recebeu boa educação em filosofia, o que o levou ainda jovem, apesar de pagão, a se perguntar sobre a existência de um Ser superior que tudo teria criado e regia.

Para satisfazer esse impulso interior que o movia para o alto, afirma que, ao estudar com os estoicos, constatou que deles nada tinha a aprender sobre Deus. Procurou depois um seguidor de Aristóteles, mas este lhe estipulou um alto preço a pagar, pelo que Justino se afastou dele. Um seguidor de Pitágoras se recusou a instruí-lo até que soubesse música, astronomia e geometria. Finalmente, um filósofo platônico satisfez de certo modo seus anseios.

         Entretanto, ele declara em uma de suas Apologias: “Quando eu era discípulo de Platão, ouvindo as acusações feitas contra os cristãos, e vendo-os intrépidos em face da morte e de tudo o que o homem pode temer, eu disse a mim mesmo que era impossível que eles estivessem vivendo em erro e no amor aos prazeres.” Contudo, isso ainda não o levou a se converter ao cristianismo.1

Milagre leva-o à Igreja

Justino nasceu por volta do ano 100 em Flávia Neópolis (hoje Nablus), na Samaria. Na foto, restos da cidade.

Afirma o santo no seu Diálogo que, ainda encantado com a filosofia platônica, andava um dia à beira-mar, quando encontrou um misterioso ancião com o qual teve longa discussão sobre religião. Compreendeu então que uma alma não pode chegar, por mero conhecimento humano, à ideia de Deus, mas que para isso necessitava ser instruída por Profetas. Pois estes, inspirados pelo Espírito Santo, conheceram a Deus e podiam torná-Lo conhecido. Então, o que fazer?

O ancião veio em seu auxílio: “Acima de tudo, rezai para que as portas da vida se vos possam abrir, pois estas não são coisas a discernir, a menos que Deus e Cristo concedam a um homem o conhecimento delas.”

Movido então pela beleza dessa religião que tornava os homens tão insensíveis aos sofrimentos e aos prazeres, converteu-se ao cristianismo, recebendo o batismo por volta do ano 130.2

Filósofo cristão

Escritos de São Justino

         Justino se consagrou, agora como filósofo cristão, a escrever e a ensinar. Não chegou a ser sacerdote, embora se conjecture que fosse diácono, pois era celibatário, pregava as verdades da fé e ensinava em sua casa. Tornou-se historicamente o primeiro dos Padres da Igreja que sucederam aos Padres Apostólicos dos primeiros tempos. Ele deixou à Igreja livros preciosíssimos, que constituem tesouro inigualável dos tempos apostólicos e são monumentos indestrutíveis da doutrina imutável da Igreja.

         São Justino morou durante certo tempo em Éfeso. Esteve também em Roma, onde abriu uma escola filosófica “perto dos banhos de Timóteo, com um homem chamado Martim”, e se tornou um incansável anunciador de Cristo aos estudiosos pagãos. Ele escreve e fala sobre o Deus, que finalmente conheceu usando as categorias e linguagem dos filósofos, bem como sua inteligência e recursos dialéticos para pregar a verdadeira Fé.3

Relicário de São Justino Mártir, na Abadia de Lilienfeld (Baixa Áustria)

Apologias e o martírio

         O martírio de São Justino e companheiros é atestado pela Acta Sancti Iustini et sociorum, cujo valor histórico é unanimemente reconhecido, baseada, como dissemos, no relato de testemunha ocular sobrevivente, que demonstra como Justino, o filósofo, ficou conhecido como “São Justino Mártir”.

Esse santo encontrou um modo de usar sua aguda inteligência e destreza dialética em defesa dos cristãos perseguidos, por meio das duas Apologias que escreveu.

A primeira, mais conhecida, foi dirigida ao Imperador Antonino Pio cerca do ano de 150, e o convenceu a considerar a Igreja com tolerância. Além de argumentar contra a perseguição de indivíduos apenas por serem cristãos, Justino também fornece ao imperador uma defesa da filosofia do Cristianismo e uma explicação detalhada das práticas e rituais cristãos da época. Pelo que Antonino deixou os cristãos em paz.

Ocorreu então que Marcos Aurélio Antonino assumiu o Império em 161. Em seu reinado, os cristãos eram considerados fora da lei, mas deixados em paz. Entretanto, esporadicamente ocorria que algum de seus subalternos mais zelosos, para atender aos pagãos que acusavam os cristãos nos momentos de crise, aplicavam a lei condenando-os.

Foi o que aconteceu no ano de 165. Justino escreveu então sua Segunda Apologia, dirigida ao Imperador Marcos Aurélio — que também era filósofo e autor de umas Meditações, tentando demonstrar a injustiça das perseguições e a superioridade da fé católica sobre a filosofia grega. O santo argumentou com a força das suas convicções, afirmando que com isso temia ser mesmo condenado à morte por as ter expressado.4

Aliás, muitos eruditos consideram essa segunda Apologia como sendo apenas uma segunda parte da primeira, e que o santo a dirigiu ao Senado Romano, e não ao Imperador, protestando contra as injustiças cometidas contra os cristãos no Império. Nela Justino afirma que a conduta cristã, ao contrário do que se afirmava, era exímia e exemplar, de modo que eles, enquanto cidadãos, eram pessoas honradas e virtuosas.

O santo se levanta especialmente contra um dos acusadores dos cristãos, o filósofo Crescêncio, fanático pagão de quem exprobrara a depravação de vida e costumes: “Faço saber aos senadores que este é um caluniador, já amplamente envergonhado como tal”, diz ele.

São Justino sabe que se expõe a ser também condenado. Por isso afirma: “Eu também espero ser perseguido e crucificado por alguns desses que mencionei, ou por Crescêncio, esse irmão do ruído e da ostentação.

         De fato, por sua intrepidez na pregação da verdadeira religião, Justino acabou por ser preso com alguns companheiros, e levado diante do prefeito de Roma, Rústico.

Procurando mostrar-se conciliador, o prefeito deixou claro que Justino poderia salvar sua vida: “Obedeçam aos deuses, e cumpram os editos dos imperadores.” Justino respondeu: “Não há nada que desejemos mais ardentemente do que suportar tormentos em nome de nosso Senhor Jesus Cristo.” E argumentou: “Ninguém pode ser justamente censurado ou condenado por obedecer aos mandamentos do nosso Salvador Jesus Cristo.”

Entretanto, foi insidiosamente acusado pelo energúmeno Crescêncio de ser contra os deuses do Império, e propugnador da superstição. Justino foi então condenado como “ateu” (ou seja, subversivo, inimigo do Estado e dos seus cultos) juntamente com outros cristãos. Deveriam ser então decapitados.

No momento do martírio, São Justino ainda proclamou em tom de desafio: “Somos mortos com a espada, mas aumentamos e nos multiplicamos; quanto mais somos perseguidos e destruídos, mais surdos ficais aos nossos números. Como uma videira, ao ser podada e cortada de perto, brota novas ventosas, e dá uma maior abundância de frutos; assim é conosco.”

Embora o ano exato da sua morte seja incerto, pode razoavelmente ser datado pelo término do governo de Rústico (que governou a partir de 162 e 168). O relato do martírio de Justino é preservado no registro do tribunal do julgamento.

Legado

A maior parte dos escritos do santo se perdeu. No entanto, a sua voz continuou a falar. No Concílio Vaticano I, os bispos queriam que ele fosse recordado todos os anos pela Igreja universal [ou seja, canonizado].

Com efeito: “O contributo distintivo de Justino para a teologia cristã é a sua concepção de um plano divino na história, um processo de salvação estruturado por Deus, no qual as várias épocas históricas foram integradas numa unidade orgânica orientada para um fim sobrenatural; o Antigo Testamento e a filosofia grega encontraram-se para formar a corrente única do cristianismo. A descrição concreta de Justino das celebrações sacramentais do batismo e da Eucaristia continua a ser uma fonte principal para a história da Igreja primitiva. Justino serve, além disso, como testemunha crucial do estatuto do corpus do Novo Testamento do século II, mencionando os três primeiros Evangelhos e citando e parafraseando as cartas de Paulo e Pedro; foi o primeiro escritor conhecido a citar os Atos dos Apóstolos.”5

 São Justino descreve a liturgia dominical como um sacrifício, e fala da Eucaristia como o verdadeiro corpo e sangue de Cristo. Afirma ainda que só podem recebê-la os batizados que acreditam nos ensinamentos da Igreja e estão livres de pecados graves.

Sua festa, celebrada antes a 13 de abril, um dia depois da data provável de seu martírio, como caía muitas vezes no tempo da Páscoa, foi transferida em 1968 para o dia 1º de junho.

         A igreja dos jesuítas em Valletta (Malta), fundada por decreto papal em 1592, ostenta relíquias desse santo. Também a igreja de Santa Maria, em Annapolis (EUA), conserva parte de suas relíquias com a aprovação do Vaticano, em 1989. Em Frankfurt (Alemanha) a igreja carolíngia mais antiga da cidade é dedicada a São Justino [foto acima], e nela o culto católico vem sendo celebrado há quase 1200 anos.

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Notas:

Fonte: Revista Catolicismo, Nº 870, Junho/2023.

  1. https://www.catholicnewsagency.com/saint/st-justin-martyr-486[1]
  2. Cfr. Jules Lebreton, St. Justin Martyr, The Catholic Encyclopedia, CDRoom edition
  3. http://www.santiebeati.it/dettaglio/23200
  4. https://www.catholicnewsagency.com/saint/st-justin-martyr-486
https://www.britannica.com/biography/Saint-Justin-Martyr