Concílio Vaticano completa 60 anos —Há razões para comemorar?

50 anos depois do Concílio, o número de católicos no Brasil caiu de 93,1% em 1960 (dois anos antes de começar o Concílio) para 64,6% em 2010
  • Luiz Sérgio Solimeo

A mídia, especialmente a católica, noticiou com destaque as comemorações ocorridas no último dia 11 de outubro pelos 60 anos da abertura do Concílio Vaticano II. Fotos ilustrativas apresentam uma procissão imensa de Bispos adentrando a Basílica de São Pedro para aquele que seria o XXI Concilio Ecumênico da Igreja Católica.

Entretanto, pode-se perguntar se há real motivo para comemoração. Nosso Senhor disse que pelos frutos se conhece a árvore: “Uma árvore boa não pode dar maus frutos; nem uma árvore má, bons frutos” (São Mateus 7,18).

Quais foram os frutos do Vaticano II?

Abandono massivo da Igreja Católica

Nesses 60 anos a Igreja sofreu um desgaste nunca visto. Em nossa Pátria — tradicionalmente o maior país católico do mundo — esse fenômeno se manifestou pela perda de fervor e decadência moral. Mas sobretudo pela apostasia em massa de fiéis, que abandonaram a Igreja Católica para cair no indiferentismo ou sair à busca de seitas “evangélicas” pentecostalistas.

Segundo as estatísticas do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística), o Censo de 2010 revelava que o número de católicos no Brasil havia caído de 93,1% em 1960 (dois anos antes de começar o Concílio) para 64,6% em 2010 — 50 anos depois do evento.1

Em vez de florescer nessa propalada “primavera da Igreja” — como se dizia do Concílio —, a Igreja perdeu no País 30% dos fiéis. Fenômeno análogo se repetiu praticamente em todo o mundo.

E, o que é mais grave, não se nota tendência de recuperação da Igreja no Brasil; pelo contrário, enquanto os “evangélicos” aumentam em média 0,8% ao ano desde 2010, o número de católicos diminui de 1,2% no mesmo período.2

Crise acentuada pelo Concílio

A crise na Igreja já existia antes do Concílio e preocupava os católicos zelosos. Muitos esperavam que o Vaticano II fosse tomar as medidas necessárias, de ordem doutrinária e disciplinar, para coibir as causas dessa crise. Em vez disso, preferiu-se entrar pela via das novidades e do abandono da tradição.

Se compararmos com o Concílio de Trento, reunido de 1545 a 1563 para fazer face à revolta protestante, veremos a diferença. Trento reafirmou com vigor e clareza as verdades da fé, condenou os erros teológicos e os abusos no clero, que favoreciam a Revolta de Lutero e de outros pseudo-reformadores.

Tais medidas deram início ao movimento da Contra-Reforma, que renovou o fervor dos católicos em países como Espanha, Itália e França, e trouxe de volta para a Igreja regiões inteiras da Europa que haviam passado para a heresia. Tal afervoramento propiciou que missionários levassem a fé para as Américas e a Ásia.

Entibiamento e falta de vigilância

O que ocorreu, então, para chegarmos aonde nos encontramos?

Resumindo muito, um clima de otimismo dominou o Ocidente após a Segunda Guerra Mundial. Contribuíram para isso, entre outros fatores, o progresso da industrialização e da técnica; a atmosfera de happy end propagada pelos filmes de Hollywood; e as modas, cada vez mais ousadas, especialmente as femininas.

Entrementes, falsas filosofias e teologias infiltravam os Seminários e Universidades eclesiásticas e leigas, praticamente sem resistência. Com isso, o fervor, a penitência e a vigilância foram se esvaindo do espírito dos católicos, dando lugar ao gozo da vida, à perda do senso do pecado e do fim sobrenatural da existência humana.

Foi exatamente no intuito de barrar o avanço dessas más doutrinas e perigosas tendências que grassavam no movimento católico — as quais, se não fossem contidas, fariam o Brasil “rolar para o abismo moral” em que hoje se encontra, conforme previu então Plinio Corrêa de Oliveira —, que ele lançou, em 1943, seu livro-denúncia Em defesa da Ação Católica.

A finalidade do Concílio Vaticano II foi resumida por quem o convocou — João XXIII — na palavra aggiornamento — expressão italiana que se pode traduzir por atualização ou modernização — da Igreja Católica.

Escrevem Casiano Floristan e Juan Josè Tamayo: “O termo aggiornamento foi usado por João XXIII para determinar o ‘caráter fundamentalmente pastoral’ do Vaticano II […] A palavra aggiornamento é traduzida nos textos conciliares com as palavras latinas accomodatio (acomodação), adaptatio (adaptação), renovatio (renovação), reformatio (reforma). Nunca é traduzida como restauratio (restauração). Isso significa que o Concílio não foi um retorno ao passado. A atualização é, portanto, reforma e inovação pelo seguimento de Cristo”.3

O tom de otimismo do Concílio foi dado por João XXIII, na foto, no discurso de abertura da assembleia, em 11 de outubro de 1962, intitulado Gaudet Mater Ecclesiae (“Alegre-se Mãe Igreja”)

Concílio aberto sob o signo do otimismo

O otimismo conduz facilmente a uma visão distorcida da realidade que evita considerar o mal, e do ponto de vista religioso, os efeitos do Pecado Original em nós, isto é, a tendência para o mal e o pecado.4

O tom de otimismo do Concílio foi dado por João XXIII no discurso de abertura da assembleia, em 11 de outubro de 1962, intitulado Gaudet Mater Ecclesiae (“Alegra-se a Santa Mãe Igreja”).

Em face dos erros dos tempos presentes, ele declarou então:

“A Igreja sempre se opôs a estes erros; muitas vezes até os condenou com a maior severidade. Agora, porém, a esposa de Cristo prefere usar mais o remédio da misericórdia ao da severidade. Julga satisfazer melhor às necessidades de hoje mostrando a validez da sua doutrina do que renovando condenações.”5

Em outras palavras, o Concílio não iria condenar os erros do tempo; antes, como veremos, entabularia um “diálogo” com eles. Cumpre recordar que toda a Europa do leste, parte da Ásia e das Américas estavam sob o jugo do comunismo. O Concílio não fez a menor menção a este flagelo da Humanidade…

“Profetas da desventura”

Em relação aos que se preocupavam com os males de nossa época, chamou-os o Papa, que deles discordava, de “profetas da desventura”.6

 O Cardeal Giacomo Biffi (1928-2015), Arcebispo de Bolonha, contradisse essa crítica de João XXIII lembrando que na Sagrada Escritura os verdadeiros profetas eram aqueles que anunciavam os castigos e as calamidades. Pelo contrário, “os falsos profetas da Bíblia costumavam proclamar a iminência de horas calmas e serenas (veja o capítulo 13 do Livro de Ezequiel).”7

Dialogar com o erro e o mal

Paulo VI promoveu o “diálogo”, num utópico desejo de obter a união de todas as religiões e inserir a Igreja no mundo moderno. Na foto, ele com o Patriarca Ecumênico Atenágoras, em Jerusalém, em janeiro de 1964

Esse otimismo que dominou o Concílio levou-o a considerar de importância secundária o erro e a heresia. Ao invés de combatê-los e proclamar a verdade, os documentos do Vaticano II — conforme o desejo de João XXIII, não modificado por Paulo VI — pregam o “diálogo”, num utópico desejo de obter a união de todas as religiões e inserir a Igreja no mundo moderno.

Por sinal, outra expressão do otimismo reinante foi “abrir as janelas” da Igreja para que nela penetrasse o ar pestilento da modernidade. Assim, os documentos com maior repercussão foram aqueles que estabeleciam o diálogo amigável com protestantes e cismáticos (Decreto Unitatis Redintegratio); com as religiões não cristãs (Declaração Nostra Aetate), e com o mundo moderno (Constituição Pastoral Gaudium et Spes).

Ora, o que Nosso Senhor nos prescreveu não foi o do “diálogo” com o erro e o mal, mas a fidelidade à verdade que Ele ensinou: “Se vós permanecerdes na minha palavra, verdadeiramente, sereis meus discípulos e conhecereis a verdade, e a verdade vos libertará” (São João 8,31-3).

Idem em relação ao mundo, com o qual o Divino Mestre tampouco pregou uma “abertura”, mas advertiu os discípulos de que se tratava de um inimigo: “Se fôsseis do mundo, o mundo vos amaria como sendo seus. Como, porém, não sois do mundo, mas do mundo vos escolhi, por isso o mundo vos odeia”. (São João 15,19)

Liberdade para o erro e o mal

Além do mais, o Concílio — ressalvando embora que se deve procurar a verdade — advogou, pela primeira vez na História da Igreja e contra toda a tradição, a liberdade para se propagar publicamente a heresia e o erro.

A Declaração Dignitatis Humanae afirma que a liberdade religiosa procede da dignidade humana e que “em matéria religiosa, ninguém seja forçado a agir contra a própria consciência, nem impedido de proceder segundo a mesma, em privado e em público, só ou associado com outros, dentro dos devidos limites.”8

É certo que não se pode obrigar alguém a agir contra a sua consciência reta, mas daí não se infere que ele possa propagar impunemente o erro e a heresia, ainda que os tome por verdade. Porque, como diz Leão XIII:

“A liberdade, esse elemento de perfeição para o homem, deve aplicar-se ao que é verdadeiro e ao que é bom. […] Se a inteligência adere a opiniões falsas, se a vontade escolhe o mal e a ele se apega, nem uma nem outra atinge a sua perfeição, ambas decaem da sua dignidade nativa e se corrompem. Não é, pois, permitido dar a lume e expor aos olhos dos homens o que é contrário à virtude e à verdade, e muito menos ainda colocar essa licença sob a tutela e a proteção das leis”.9

Negação do princípio da não-contradição

A confusão dos documentos do Vaticano II chega a verdadeiros absurdos em matéria de primordial importância, como a natureza de Deus. Segundo a Constituição Dogmática Lumen Gentium, “os muçulmanos […] conosco adoram o Deus único e misericordioso […].”10

Tal afirmaçãoé mais uma manifestação do aspecto dialético dos documentos conciliares, negando o princípio da não-contradição. Pois, enquanto os católicos creem e professam a doutrina da Santíssima Trindade e adoram o Deus Uno e Trino, os seguidores de Maomé não só negam esta verdade, mas a combatem, acusando os cristãos de serem politeístas.11

Vaticano II: Não um evento, mas um processo

Haveria ainda muito a se examinar nos documentos do Vaticano II e a confrontá-los com a doutrina católica do Magistério tradicional, mas isso extravasaria os limites destas breves notas. Em artigo anterior apresentamos outros aspectos do Vaticano II, os quais mostram igualmente por que esse evento não deve ser comemorado.12

A bem dizer, ele não foi um evento, mas o início de um longo processo reformista da Igreja de Cristo — a Ecclesia semper reformanda dos protestantes e modernistas —, cujo aspecto mais recente é o Sínodo do Papa Francisco, destinado a levar às últimas consequências o que foi apresentado de modo confuso 60 anos atrás.

Pelos documentos que exarou e o modo como tem sido aplicado, o Concílio efetuou uma mudança quase completa de mentalidade de um grande número de católicos, levando-os de um lado a abandonar o espírito de sacrifício, a piedade e o senso de sacralidade, e de outro lado a se aproximarem do mundo, de suas pompas e suas obras.

Voltando à pergunta inicial, há razões para comemorar?

“Stat Crux dum volvitur orbis”

Podemos aplicar à Santa Igreja o lema dos religiosos Cartuxos: Stat Crux dum volvitur orbis (“A Cruz permanece estável, enquanto o mundo gira ao seu redor”).

Em que pesem todas as crises pelas quais a Santa Igreja passa neste mundo, Ela continua sempre estável e fiel à Cruz de Cristo, à sua doutrina imutável e à sua santidade sem jaça.

Não esqueçamos a promessa de Nosso Senhor: “E eu estarei sempre convosco, até o fim dos tempos” (São Mateus 28,20).

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Notas:

Fonte: Catolicismo, Nº 863, Novembro/2022

  1. Denise Menchen Fabio Brisolla, Católicos passam de 93,1% para 64,6% da população em 50 anos, aponta IBGE, http://www1.folha.uol.com.br/poder/1112382-catolicos-passam-de-931-para-646-da-populacao-em-50-anos-aponta-ibge.shtml 10/14/22.
  2. Evangélicos devem ultrapassar católicos no Brasil a partir de 2032,https://veja.abril.com.br/brasil/evangelicos-devem-ultrapassar-catolicos-no-brasil-a-partir-de-2032/ 14-10-22.
  3. Aggiornamento. In Casiano Floristan – Juan Josè Tamayo, Dizionario sintetico di pastorale. https://www.scrutatio.it/DizionarioTeologico/articolo/2985/aggiornamento 17/10/22.
  4. Concílio de Trento – Decreto sobre o Pecado Original: “O Santo Concílio, entretanto, professa e pensa que a concupiscência ou a tendência ao pecado permanece no batizado e que foi deixado para o combate, não pode prejudicar aqueles que não consentem e resistem com a graça de Jesus Cristo. Em vez disso, quem lutar legitimamente será coroado (2 Tim 2,5)”. (Denzinger-Hunerman, n. 1515).
  5. Discurso de Sua Santidade Papa João XXIII na abertura solene do ss. concílio, 11 de Outubro de 1962, n. 2 https://www.vatican.va/content/john-xxiii/pt/speeches/1962/documents/hf_j-xxiii_spe_19621011_opening-council.html 15-10-22.
  6. Idem.
  7. Giacomo Biffi, Memorie e Digressioni di un Italano Cardinale, Edizioni Cantagalli, 2007, p. 178.
  8. Declaração dignitatis humanae sobre a liberdade religiosa, n. 2, https://www.vatican.va/archive/hist_councils/ii_vatican_council/documents/vat-ii_decl_19651207_dignitatis-humanae_po.html 16-10-22.
  9. Immortale Dei, 1885, n. 38, https://www.vatican.va/content/leo-xiii/pt/encyclicals/documents/hf_l-xiii_enc_01111885_immortale-dei.html 16-10-22.
  10. Constituição Dogmática Lumen Gentium Sobre a Igreja, n. 16. https://www.vatican.va/archive/hist_councils/ii_vatican_council/documents/vat-ii_const_19641121_lumen-gentium_po.html
  11. Sobre a negação da Santíssima Trindade no Corão e os ataques dos muçulmanos aos cristão que crêem nesse dogama, ver Luiz Sérgio Solimeo, Islam and the Suicide of the West‒ “O Islã e o Suicídio do Ocidente “ (Spring Grove, Penn.: The American Society for the Defense of Tradition, Family, and Property, 2018).
  12. Luiz Sérgio Solimeo, A Nova Teologia do Concílio Vaticano II, https://ipco.org.br/a-nova-teologia-do-concilio-vaticano-ii/ 17-10-22.