Não há algo de errado no significado que certos padres estão dando à palavra Páscoa?

O cordeiro deve ser imolado no crepúsculo e ser comido assado no fogo, com pães sem fermento e ervas amargas; ele deve ser comido apressadamente, em pé, com as sandálias postas, o cajado na mão e os rins cingidos. Porque é “a Páscoa (isto é, a passagem) do Senhor” (Ex 12, 11) .

Pergunta Penso que há algo de errado no significado que está sendo dado à palavra Páscoa. Ouvi três padres falarem, em missas de sétimo dia, que o defunto fez a “páscoa”. Isso talvez seja para aliviar os familiares e dizer de modo mais leve que o parente morreu. Além do mais, como nessas missas nunca falam sobre o purgatório, ao dizerem que o defunto fez a “páscoa” parecem dizer que todos vão para o Céu. Pelo que me lembro de minhas aulas de catecismo, a Páscoa de Moisés e a de Nosso Senhor Jesus Cristo são algo muito diferente do que esses padres falam.

RespostaOs padres referidos pelo missivista repetem a ideia que a maioria das pessoas fazem da Páscoa. Seu relato me fez lembrar um artigo que encontrei no site do MST e uma reportagem de um rabino que li na BBC Brasil, dizendo que a Páscoa comemora a passagem do Mar Vermelho, pela qual o povo judaico libertou-se da escravidão no Egito a caminho da Terra Prometida. Esse falso conceito nasce da interpretação errada que fazem do significado da palavra hebraica “pessach”, quer dizer “passagem”: no caso dos israelitas da Bíblia, da escravidão à liberdade; no caso de Jesus Cristo, da morte para a vida, pela sua Ressurreição. Logo, segundo eles, nós também faríamos, ao morrer, nossa “páscoa”, nossa “passagem” desta vida terrena para a vida eterna.

Essa interpretação de “pessach” é errada a dois títulos. Primeiro, porque é incompleta e, depois, porque o episódio ao qual se refere não é a travessia do Mar Vermelho. É o que veremos a seguir, começando pelo segundo aspecto e relembrando aos leitores suas lições de catecismo quando eram crianças.

Deus “passou adiante”, poupando os eleitos

Como todos se lembram, apesar das nove pragas que Deus enviou pela mão de Moisés, o Faraó permaneceu com o coração duro e não permitiu a saída do povo judeu do Egito, porque significava perder a mão de obra escrava para suas grandes construções. Porém, “o Senhor disse a Moisés: Flagelarei ainda com uma praga ao Faraó e ao Egito, e, depois disso, vos deixará partir, e até vos constrangerá a sair” (Ex 11, 1). Moisés disse então ao povo: “Estas coisas diz o Senhor: À meia-noite passarei pelo Egito” (Ex 11, 4). Essa é a primeira menção que a Bíblia faz da Páscoa.

No início do capítulo seguinte do livro do Êxodo, Deus dá a Moisés e Aarão as instruções para o povo: um cordeiro ou um cabrito por família e por casa, sem defeito, macho e de um ano, deve ser imolado no crepúsculo e deve ser comido assado no fogo, com pães sem fermento e ervas amargas; ele deve ser comido apressadamente, em pé, com as sandálias postas, o cajado na mão e os rins cingidos. Porque é “a Páscoa (isto é, a passagem) do Senhor” (Ex 12, 11).

Detalhe fundamental: o sangue do cordeiro deve ser posto sobre as ombreiras e sobre a moldura das portas das casas onde for comido. A sequência do relato indica a importância fundamental desse símbolo:

“Nessa noite eu passarei pela terra do Egito, e ferirei (de morte) todo o primogênito na terra do Egito, desde os homens até aos animais, e exercerei a minha justiça contra todos os deuses do Egito, eu que sou o Senhor. O sangue, porém, será para vós um sinal (em vosso favor) nas casas em que morardes, pois eu verei o sangue e passarei adiante, e não haverá para vós a praga destruidora, quando eu ferir a terra do Egito” (Ex 12,12).

O que realcei com letras em negrito justifica o que escrevi acima, ou seja, que a interpretação hoje comum, além de errar no episódio histórico ao qual se refere, é incompleta. Porque “páscoa” significa mais precisamente que Deus “passou adiante”, sem ferir de morte as casas que tinham o sangue do cordeiro no seu lintel. Essa tradução é tanto mais correta, quanto o original da Bíblia emprega dois verbos diferentes para referir-se à “passagem” de Deus: usa o verbo “pâshá” para designar a passagem do Senhor além das casas dos judeus no momento da décima praga, e o verbo “ábar” para referir-se à passagem do Senhor pela terra de Egito para ali exercer sua vingança.

A língua inglesa, nesse particular, é mais precisa que nossas línguas latinas, pois traduz “pessach” por “Passover”, que significa, literalmente, passar (to pass) além ou por cima (over). Essa tradução destaca o fato profético de que o sangue do cordeiro faz com que a justiça divina poupasse os eleitos e punisse os malvados.

De tal maneira esse acontecimento foi o evento decisivo para a libertação dos judeus, que o próprio Deus mandou que a Páscoa fosse celebrada anualmente com uma festa que durava toda uma semana e se iniciava com uma ceia na qual se comia um cordeiro acompanhado de pães sem fermento e ervas amargas, como Nosso Senhor fez com os Apóstolos durante a Última Ceia.

“Que em sua páscoa Cristo inaugurou”

A Páscoa era para os israelitas a festa por excelência, sob todos os pontos de vista: histórico, religioso, social, familiar e até agrícola, pois servia de ocasião para oferecer solenemente a Deus as primícias da colheita. Servia de grande reunião nacional, pois levava todas as famílias que pudessem até o Templo de Jerusalém, depois de terem-se purificado de toda mácula, o que obrigava os judeus a acertar as contas com a Lei.

Mas a festa não estava destinada apenas a comemorar o passado. Ela figurava ao mesmo tempo as coisas do futuro, em particular as sublimes realidades da Nova Lei. O cordeiro pascal representava, por antecipação, com traços muito claros, o verdadeiro Cordeiro de Deus, o Salvador destinado a “tirar o pecado do mundo” (Jo 1, 29), o Qual, “como um cordeiro diante do que o tosquia, não abriu a sua boca” (Is53, 7), deixou-se crucificar e verteu seu Sangue para a remissão dos pecados (Mt26, 28) e, como o cordeiro do Egito, não teve nenhum de seus ossos quebrados na Cruz (Jo 19, 36).

O cordeiro pascal que servia de alimento para a viagem figurava ainda o Divino Salvador nutrindo os homens com sua própria carne: Agnus Paschae  deputator (o Cordeiro pascal designado), como lembrou Santo Tomás de Aquino na sequência Lauda Sion. As ervas amargas representam, por sua vez, as penas e trabalhos do cristão, dos quais ele não é dispensado pelo alimento eucarístico. E, de modo ainda mais perfeito que um israelita, o cristão não pode participar do banquete, ou seja, da comunhão pascal, se não se encontra purificado de toda mancha mortal.

Como belamente diz o Hino Pascal, que se canta junto do Círio na noite da Vigília de Sábado Santo:

“Moisés libertando os oprimidos/ Prefigurava a nossa libertação. / Somos hoje filhos do novo reino / Que em sua páscoa Cristo inaugurou. / O servo Cordeiro imolado / É Cristo nossa páscoa dos ázimos. / Sua carne oferecida em sacrifício / Realizou em nós o perdão do Pai.”

A Ressurreição – Nicolas Bertin (1668). Oberschlesisches Landesmuseum, Ratingen (Alemanha).

Páscoa da Ressurreição

Voltando à consulta de nosso missivista, vê-se claramente que estão muito enganados os padres que associam a morte de uma pessoa à Páscoa, como se o fim da vida terrena fosse uma libertação do mundo material para passar a uma “terra prometida” de caráter espiritual (o Nirvana?). Certamente o mistério pascal celebrado no Tríduo da Semana Santa tem como ponto culminante a celebração da Ressurreição de Nosso Senhor, pois “se Cristo não ressuscitou, é inútil a vossa fé”, já que nós estaríamos ainda no nosso pecado, como diz São Paulo (1 Cor 15,16). Mas é preciso insistir no fato de que, como canta o hino, “Cristo nossa páscoa foi imolado” e que foi pela sua Paixão e Morte que Ele nos redimiu, fazendo com que a ira de Deus “passasse adiante” e nos aceitasse na terra prometida do Céu.

Para encerrar essas breves considerações, convém relembrar que, desde o começo, os primeiros cristãos tiveram empenho em lembrar a salvação do mundo pela obra redentora de Nosso Senhor mediante a celebração do Tríduo Pascal, que inclui a instituição eucarística na Última Ceia (Quinta-Feira Santa), a Morte na Cruz (Sexta-Feira Santa) e a Ressurreição (Sábado Santo).

Houve, no começo, certa hesitação para fixar a data da celebração da Páscoa. A maior parte da Igreja adotou como festa principal, correspondente à Páscoa judia, o dia da Ressurreição, fixado irrevogavelmente no domingo, dia em que ela se deu. Na província da Ásia, porém, apoiados no Evangelho de São João, continuava-se a celebrar o aniversário da morte de Cristo no 14 Nisan do calendário lunar judeu, que podia cair em qualquer dia da semana e não coincidia quase nunca com a Páscoa do resto da Igreja, resultando duas páscoas com objetos diferentes: a Páscoa da cruz, da Ásia, e a Páscoa da Ressurreição, do resto da Igreja. Enquanto em Antioquia eram aceitas as determinações dos judeus para a fixação do 14 Nisan (celebrando-se a Páscoa no domingo seguinte), em Alexandria e em Roma a data da Páscoa era calculada independentemente dos Judeus e não era jamais fixada antes do equinócio (o momento em que o sol cruza o equador celeste, 20-21 de março). Foi o costume que prevaleceu e que o concílio de Nicéia, do qual se celebra este ano seu 1700º aniversário, consagrou definitivamente, determinando que a Páscoa fosse celebrada no domingo que se segue à lua cheia após o equinócio.

Aproveitemos estas considerações durante a Semana Santa para aprofundar nossa fé e aumentar nossa gratidão a Nosso Senhor pela sua imolação e pelo seu Preciosíssimo Sangue vertido na Cruz, e também para meditar no papel de Nossa Senhora como Co-Redentora do gênero humano, pela sua maternidade divina e sua plena aceitação do sacrifício de seu Filho.